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Devs: o coração das trevas no colo da pós-modernidade


Direção: Alex Garland. Roteiro: Alex Garland. Produção: Alex Garland, Allon Reich. Montagem: Jake Roberts. Fotografia: Rob Hardy. Som: Glenn Freemantle. Música: Geoff Barrow.


Foi a impossibilidade de fazer o que de fato ele queria no campo do audiovisual nos Estados Unidos que levou Alex Garland para o território da televisão norteamericana. O resultado dessa migração pode ser lido como uma espécie de sopro criativo que no ano de 2020 ajudou a estabelecer uma uma certa experiência de distinção dessa "televisão" estadunidense reimaginada a partir de alguns códigos, não específicos pertencentes ao cinema em si.


Sim, há bastante da prerrogativa de "Ex_Machina" (2015) aqui, mas o fato é que "Devs" (2020) parece colocar - se um passo adiante do ponto de onde observamos "Aniquilação" (2018) e "The Fall" (2020), por exemplo. Gosto bastante do conceito da sua distopia porque ela sugere uma conexão direta a esse ideal de um futuro não idealizado.


Tudo no design de produção da série nos deixa a impressão de estarmos vendo algo da ordem representativa do hoje, mas o sentimento perceptivo de que estamos diante de uma fração do "amanhã" é bem latente. Nas ruas, essas mesmas apresentadas sempre por um senso de suspensão temporal, abriga veículos ultra silenciosos e que parecem realmente nunca estarem sendo operados por pessoas físicas.


Pode parecer um detalhe mas diz muito da consciência que Garland tem da saturação desse futurismo trôpego trazido atualmente por uma companhia como a Marvel Studios, a título de uma comparação bem forçada. O virtuosismo de Devs é não acreditar que a representação desse futuro passe pela simples exposição de amanhã feito dentro de um estúdio provido pela FX.


Importante salientar que o recurso da grande companhia é o que torna possível a produção, mas ela mesma é parte do gesto que a obra em si movimenta. Retornamos à questão da liberdade criativa protelada ao autor da obra artística. Sua assinatura passa a ser validada não apenas pela força da ação da série, sua vitalidade reconexa pelo trato lúcido dos temas que ela mobiliza e pelo modo como sua estilística é estabelecida.


Não é sobre o universo das grandes corporações tecnológicas, da problematização sobre o fracasso de qualquer modelo de sociedade, da impiedade que toma conta da natureza do homem moderno. Mas é sobre tudo isso também. Uma amálgama temática e conceitual sobre como a ficção-científica pode ainda mobilizar argumentos muito sólidos acerca de uma reflexão sobre o subgênero e seus campos de fuga dentro da pós-modernidade.


Não se trata, obviamente, de qualquer preciosismo relacionado à alcunha da natureza "cult" do projeto, mas muito mais à sua resposta prática e concreta da representação desse mesmo contexto. A nível de comparação, é como pensarmos acerca dos fluxos que podem colocar lado a lado trabalhos como "Loki" (2021), "Obi-Wan Kenobi" (2022) e "The Boys" (2020 - ).


Claro, são projetos de diferentes linhas de conotação e intencionalidades mas que operam códigos estético-conceituais similares guardadas as devidas proporções. De de um lado, as séries da Marvel Studios e Disney (se formos pensar haver alguma distinção entre ambas) atomizam fórmulas pré-concebidas no trato com a proposta do compromisso com um público domesticado.


Em uma outra aba, a Amazon Studios limita uma experiência de "rebeldia" plastificada na mesma intenção de poder lidar com seus assinantes na mesma linha de domesticação do olhar. Na autópsia da obra aberta na "sala de cirurgia", nada parece sobrar para uma posterior exumação do corpo ali exposto.


A vitalidade de Devs exorta esse contraponto por acreditar que a dinâmica com o espectador deve considerar em primeira e última instância esse respeito com a inteligência dessa parte.


É disso que fala a construção de uma narrativa que não cede a convencionalidades, que se arrisca na reflexão sobre os papéis do personagem numa ficção e que por consequência, assume igualmente o risco de lidar com estórias de um amanhã que é sombrio não porque suas figuras sejam más unilateralmente e ponto.


Mas por não temer operar estruturas não preconcebidas mesmo na ordem serial. Não há temporada dois para a estória que Garland propõe. A obra é o que é. É uma via possível dentro de uma indústria que cada vez mais se vampiriza na busca pelo plot perfeito, pela superprodução que renda mais sequências, derivados, metacriacões adiante.


Contra tudo isso, Garland defende e faz justiça ao seu ideal de crença na presença da experiência, não única, mas distinta dos nossos modos de acompanharmos uma ficção-científica que não se encerra na figura do subgênero em si. Ramificada, a obra se abre para muitos outros modos de a lermos hoje, amanhã e depois de modos também distintos.


Esse é o poder realizar que a arte tem para partilhar conosco no nosso lugar de espectatorialidade. Essa série incrível está disponível no streaming da Star+ e precisa ser vista. É realmente uma das melhores coisas produzida na televisão dos Estados Unidos desde "Legion", também do FX. (2017 - 2019)

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