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O Reino I: a disputa dialética entre bem e mau


Direção: Lars Von Trier, Morten Arnfred. Roteiro: Lars Von Trier, Niels Vørsel, Tómas Gislason. Produção: Peter Aalbæk Jensen. Montagem: Molly Malene Stensgaard, Jacob Thuesen. Fotografia: Eric Kress. Efeitos Visuais: Søren Buus. Música: Joachim Holbek.


Talvez não seja justa a orientação de que Von Trier e Morten Arnfred tenham apenas tentado criar alguma "resposta" ao também paradigmático Twin Peaks de David Lynch. Carregado de simbologias e elementos do estudo do cinema e da televisão daquela primeira metade dos anos 1990, essa primeira parte da série dinamarquesa aponta hoje, 18 anos depois, toda sua aura de especificidade e compromisso com o poder das melhores narrativas do nosso tempo.


Interessante como a obra se desenrola a partir desse índice de determinação do absurdo como matéria-prima para a solidez da sua proposta. Não é que Von Trier tenha delibearadamente colocado em curso um desejo de fazer algo "ruim" de modo consciente. Ele até joga com essa informação por entender tudo o que poderia fazer tendo como premissa um ideal de integralidade entre os diferentes núcleos que o formato seriado permite.


Há essa base dialética sobre os discursos do que seria o bem e o mal, mas sempre alicerçada por variações tonais da comédia, do terror, do filme de crime e do romance erótico. O grande êxito da produção, considerando tudo isso, é não entrelaçar os discursos de modo meramente embaralhado, sobretudo na primeira temporada. Notamos ao logo dos seus quatro episódios uma sinergia poderosa entre os blocos dramatúrgicos costurados pelos personagens da trama.


No centro disso tudo, fica pontuado que é a intolerância política, a xenofobia e a dicotomia ente a ciência, a espiritualidade e o ocultismo, as engrenagens que movem a obra sempre a frente. Retornando ao campo da improbidade da relação entre esses elementos, a impressão que ficamos desde o início é de que realmente tudo isso poderia dar muito errado. Mas não dá.


Justamente pela consciência que Von Trier tem dos tons a ser impregados em cada um dos núcleos da série. É como se, na superfície dos eventos protagonizados pelas figuras que atuam nesse hospital assombrado, as reais complexidades que envolvem a estória ficassem sempre operando em uma espécie de subplano narrativo.


Para vermos através dessa opacidade, nosso olhar precisa se desvencilhar tanto dos vícios de uma abordagem art house mundial, quanto do preconceito que tenhamos com a estilística discursiva das telenovelas ou soup operas contemporâneas. A ideia é esse impulso de afastamento mesmo. De um olhar a ser operado como um pêndulo, indo e vindo na balança entre essas duas tabelas perceptivas. Estamos abertos para pensar na viabilidade do improvável pode ser a leitura exata aqui.


Esquecendo um pouco a lógica do realismo eventual, Trier nos convida a religarmos os pontos que podem vir a colocar em pólos opostos os conceitos sobre o naturalismo da representação da vida cotidiana (nesse caso muito ligada ao universo laboral do trabalho) e da encenação do fantástico (quando vamos pensar as referências da fantasmagoria e do sobrenatural) juntos operando dentro de um mesmo polo atmosférico.


Indo e vindo, ora entendemos estar diante de uma construção de um mundo concreto, com problemas concretos, daí os assassinatos, as discórdias revanchistas e a toxibilidade das relações humanas como tríades visíveis desse microcosmos que o hospital em si é. Dessa metáfora materializada de um conto maldito e espetacular construído sob a aparência do improviso e sedimentado discretamente pelo estímulo que essas figuras instigam.


Porque por mais estranhos que todos eles sejam, nosso desejo é o de estarmos cada vez mais perto deles. Deixando um pouco de lado a tese da projeção espectatorial, não é que devamos nos projetar neles. Esse é o pior lugar possível para se assumir.


Por serem elementos solidamente construídos, cada um com suas idiossincrasias, vícios, crenças e limitações, eles nos tragam para dentro das suas questões, o que acaba por nos mantermos presos nas alas diversas, visíveis e invisíveis da unidade hospitalar.


Há mundo para além daquilo que o Reino exorta? O que esse primeiro capítulo do magnum opus de Von Trier nos deixa como pista é uma resposta negativa, e nesse caso, positiva em todos os seus sentidos.

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