A Professora de Piano: uma faca no coração
- danielsa510

- 29 de mar. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 9 de jul. de 2021

Direção: Michael Haneke. Roteiro: Michael Haneke, Elfriede Jelinek. Montagem:NadineMuse, Monika Willi. Direção de Fotografia:Christian Berger. Som Direto: Guillaume Sciama. Produção: Yvon Crenn.
Muito se fala do estilo áustero, indireto (por vezes muito direto) e manipulador de Michael Haneke. “Misantropo”, já ouvi alguma vez também. Afora isso tudo, a proposição do seu cinema irrompe uma marca meramente taxativa. Não há como negarmos a potência da sua produção, sobretudo aquela que remete ao período da primeira década de 2000. É dentro desse contexto que filmes como A professora de Piano (2001) se colocam. Para além da ideia de um drama erótico, nossa experiência com a obra se dá por meio de um velado exercício de percepção da nossa condição espectatorial e reflexiva com a cinematografia.
Pensar esse deslocamento a partir do nosso lugar enquanto aquele que olha é interessante. Nos percebermos espectadores aqui parece fazer parte do jogo. É claro que, essa, à propósito, é uma das principais noções dessa fase do realizador austriáco. Mas aqui tudo se torna mais complexo porque os códigos dessa ‘manipulação” estão aparentes. Sob a bruma dramática, nos pegamos em um jogo ambíguo da condição de quem não pode se apegar a um herói a quem possamos acompanhar. Nisso, tudo o que o filme parece não querer de nós é a disposição para a identificação/projeção.
Inicialmente, tudo nos leva a uma aproximação com Erika (Isabelle Huppert). Professora de meia idade que vive no subúrbio de Paris com a mãe idosa, ela é uma figura extremamente opaca. Ou seja, não conseguimos atravessá-la inicialmente de modo a enxergarmos as nuances da sua personalidade, por exemplo. Em um primeiro momento, os códigos que Haneke nos deixa é a da sua personalidade rígida e intransponível. Ela é má? Talvez a interpretação não nos conduza para esse tipo de leitura superficial. Por isso a inserção de Walter Klemmer é importante na virada de percepção que temos da própria protagonista.
Esse é um ponto interessante porque chegamos no instante da análise em que nos questionamos sobre a natureza desse protagonismo constatado na cinematografia contemporânea. O que é protagonizar uma narrativa nesse modelo narratológico adotado por um realizador como Haneke? É estimular empatia, auto identificação, repulsa, desidentificação? Talvez uma amálgama de tudo isso. Por isso o encontro entre essa professora de piano e seu aluno a ela devotado seja um ponto decisivo e sem retorno para o caminho traçado por ela. Mas o autor decide não ceder aos vícios de uma representação romântica. Esse parece ser um dos índices mais potentes dessa mesma cinematografia dos nossos tempos.
A vida é dura e o cinema, como uma forma de representação dessa mesma realidade, não necessariamente precisa ser um espelho oculto dessa construção. Por isso, as coisas também não são representadas de modo idealizado. Um romance surge no horizonte. Mas ao invés de uma construção lírica ou mesmo lúdica, a abordagem é orientada pelo orgulho e a indiferença. A relação entre essa mulher e esse homem opera como uma espécie de pêndulo. Inicialmente, aquela que é o objetivo de desejo resiste ao jogo da aproximação daquele a quem o desejo da paixão parece dominar. E uma vez esse objeto dominado, a estória se dobra. À abertura de Erika, dá-se o distanciamento de Walter. O romance entre os dois segue seu movimento pendular.
E nisso, é como se Haneke nos pedisse a atenção para notarmos essas mudanças de prismas. Você não precisa se projetar nessa relação que a tela imprime. Ao invés disso, se distancie, quase conseguimos ouvir o realizador nos advertindo. Porque nesse jogo de paixões que alucinam, pouca coisa de construtiva parece sobrar. A negação é como uma premissa base de onde o relaciona germina. Ele só avança por meio dessa dinâmica. Nisso, e considerando a impossibilidade desse amor corrompido e descorrespondido por ambas as partes, o que resta é a ruína do tecido social de uma vez por todas.
Totalmente quebrada por dentro, o que restaria à Erika nessa situação? Ela não se sentia amada, nem capaz de dar amor, até que descobre esse romance tardio e o vivencia pelos diferentes prismas que o afeto pode resguardar. Entre a resistência e a entrega, por fim ela decide ter sua vingança. Ela vai saltar na tela como uma heroína vingativa a fim de vingar todos aqueles que sofreram algum trauma de qualquer relação tóxica? Não. Ela mesma é uma encarnação dessa unidade patológica em si. Incapaz de amar, ela só pode vingar a si mesma. E nesse caso, a única coisa que pode lhe restar é essa faca no coração. No seu limite, ela sai de quadro e vai aonde nossos olhos não possam mais enxergá-la.
Portanto, não nos enganemos. Haneke não quer que acreditemos que a narrativa tenha um herói ou vilão necessariamente. O que podemos deduzir, ao fim, é essa potente proposta de uma cinematografia que nos deixa diante de uma janela em aberto. Imagine-se diante de uma porta sem maçaneta. Como você faz para fechá-la? Talvez encostando-a. Ainda assim, haverá um interdito relativo a alguém que poderá entrar a qualquer momento uma vez que a entrada não estaria selada. Nesse cinema do futuro (ou seria do presente?) o coeficiente da tragédia é o equivalente direto de uma experiência que nos pede maturidade para olharmos diante da tela. O desconforto é seu índice máximo, ainda que a nós a decisão entre seguir ou não com o play, nesse caso, nos seja algo soberano.



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