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A Viagem de Chihiro: o trabalho como uma armadilha para a vida

  • Foto do escritor: danielsa510
    danielsa510
  • 20 de jul. de 2021
  • 4 min de leitura

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Direção: Hayao Miyazaki . Roteiro: Hayao Miyazaki. Montagem: Takeshi Seyama. Direção de Fotografia: Atsushi Okui. Produção: Toshio Suzuki. Música: Joe Hisaishi


Mais do que uma animação engraçadinha para assistir com os filhos em um fim de noite, A Viagem de Chihiro é um dos mais sólidos filmes da história do cinema. Sim, filme. Porque uma outra ideia que precisamos refletir é a do lugar comum que coloca o gênero no mesmo cesto do que seria a mera experiência do desenho animado como um todo. Por isso, entender um pouco sobre a ideia do processo é tão importante aqui. Isto posto, sigamos.


O trabalho, diferentemente do que a posição que o sistema capitalista em grande medida nos coloca, pode não ser necessariamente um canal de ascendência e descoberta de sentido para a vida. Ele pode, ao contrário de tudo isso, oprimir nossa existência e dissecar nossa subjetividade em função da sua lógica de produção, muitas vezes, destituída de um sentido claro. Tudo isso Hayao Miyazaki coloca em evidência a partir do momento em que entramos com Chihiro no mundo mágico desse “Japão alternativo”.


É claro que ele não retrata isso a partir da estruturação de uma grande lição moralista óbvia ou mega expositiva. Tudo, ao contrário, é posto a partir de uma robusta estrutura composta de pequenos memoráveis momentos ao longo do filme. Nessa concepção linear da estória contada, fica bem claro, desde o prólogo, que veremos uma narrativa bem clássica na sua forma com início, meio e fim. Mas que nem por isso estaremos em contato com um trabalho previsível. Esse índice de condução é determinante aqui.


Falar disso é pontuar como a figura da autoria é definitiva para o corpo do filme de modo geral. Escritor e diretor do filme, Miyazaki fundamenta o universo da narrativa a partir da referência que ele traz da vida real. Neste caso, a própria criação de Chihiro vem da inspiração que uma filha de um amigo do diretor o deu. Com a protagonista moldada, ele sedimentou o restante dos elementos da obra, seja no nível conceitual ou prático (no tocante à concepção da animação e seus pontos técnicos em si).


Na ordem do conceito, de fato, a ideia do trabalho como uma armadilha para a vida é pontuado fortemente. Uma vez inserida naquele universo fantasioso - mas nem por isso ilusório - a garota vai passando por uma série de situações, todas elas costuradas pela ideação do labor. Ou seja, a assimilação do ofício vem não para dignificar a existência da protagonista, e muito mais como o reforço desse estado de opressão de uma vida não-ideal. Esse descolamento de uma condição ideal se reforça ainda mais pelo fato de a heroína não ter podido escolher estar nessa situação.


Interessante pensarmos que toda a problemática do filme tem início com uma decisão errada dos pais. Ou seja, os adultos, aqueles que deveriam assumir a frente nas problemáticas da vida é quem iniciam todo o problema que levará a criança da estória à frente da resolução do conflito da trama: seus responsáveis legais se transformam em porcos e a garota precisará fazer de tudo para tê-los de volta ao normal. E para que isso ocorra, Chihiro terá de trabalhar.


Por outro lado, é colocando essa questão definitiva para a personagem que Miyazaki modula essa própria condição. Uma vez que esse ofício será também a mola que permitirá à garota alcançar um grau de maturidade que ela mesma talvez não imaginasse alcançar. Tudo surge meio que de forma impositiva, mas é inegável o fato de que também notamos o quanto ela cresce e amadurece a partir das situações com que ela tem de lidar. A transformação da sua personalidade atravessa esse ciclo e também se solidifica para uma projeção de uma nova fase da sua vida a partir disso.


Toda a sequência do trem remete muito a isso. A essa espécie de rito de passagem não- cerimonioso por que a personagem principal passa. E mais uma vez: não interessa ao diretor colocar tudo isso em primeiríssimo plano, evidenciando assim tudo ao espectador, como se este não pudesse, por si mesmo, intuir aquilo o que vê na tela. E o que vemos? Uma garota que está passando por uma transição silenciosa, calma e engrandecedora. Nessa travessia, Chihiro chega ao outro lado desse mundo mágico transformada. E a partir disso entendemos que a garotinha assustada do primeiro ato já não é a que vemos no epílogo do filme.


Disso é que são feitas as grandes narrativas da historiografia do cinema. Mais do que contar cifras, contam mais para a experiência cinematográfica a marca que o filme deixará na linha da história. Pelo seu universalismo, originalidade e sensibilidade é que o cinema pode se tornar algo maior do que o gesto fílmico isolado. Ele se faz a soma das referências cujo trato não está fechado equivocadamente com o retorno financeiro do cinema enquanto indústria, mercado, mas enquanto uma síntese na prática da subjetividade humana. Isso é o que Hayao Miyazaki nos ensina.


O filme está disponível no catálogo da Netflix Brasil.

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