Ainda Estou Aqui: convenções de um cinema contradito
- danielsa510
- 11 de nov. de 2024
- 4 min de leitura

Ainda Estou Aqui (2024) é um filme bem sóbrio em alguns aspectos, mas não o entendo como uma obra " madura" no sentido lato da palavra em si. Há cerca de 12 anos sem fazer um trabalho focado no Brasil ou em experiências de personagens e fatos ligados ao nosso país, esse não deixa de ser um projeto de um "estrangeiro", de certo modo.
Obviamente que o Salles opera dentro de uma escala que contempla alguns dos realizadores com trabalhos mais contundentes da historiografia brasileira dos últimos 30 anos. A questão é que essa visão ultra romantizada da vida (e dos percalços) de uma classe média alta nacional me soa distante, não me causa afecção alguma ou não me diz muita coisa a partir de um lugar onde eu (e mais da metade dos brasileiros espalhados pelo país) não se encontra ou nunca esteve.
O drama da ditadura é um capítulo que jamais foi resolvido - e certamente jamais será - na cronologia política brasileira. Mas penso que para além dos excessos acontecidos, no lado da esquerda e por parte dos militares, há esse rombo de uma dívida jamais paga, saldada.
Por mesma razão, não é como se não entendêssemos a aflição dos Paiva. A mesma, a propósito, de tantas outras famílias que também possam ter tido familiares e amigos desaparecidos no meio desse processo. Esse peso é/foi real, mas tudo isso é posto no filme a partir de uma visão blindada de todo e qualquer tipo de reflexão mais diretiva sobre o horror desse período.
Fazendo um exercício de tentar equacionar essa variação é como pensarmos na série de códigos que sedimentam boa parte de todo o primeiro ato da obra na seguinte ordem: Casa nobre na zona sul/ Lua de mel em Bariloche/ Souflé de queijo suíço/ Festa na casa com amigos profissionais liberais/ Solicitação de ajuda aos mesmos amigos profissionais liberais/ Vida nova em Londres ou São Paulo.
É um arranjo muito apartado de uma rota aonde a cinematografia brasileira contemporânea tende a se endereçar na contemporaneidade. Resgatar aqui as palavras de um diretor como Adirley Queirós, por exemplo, vale por nos ajudar a colocar em perspectiva como a política pode e deve ser um lugar de tensionamento para a prática do audiovisual em um país imerso em tantas contradições político-sociais.
E se para Adirley, o politicamente correto tende a ser o pior lugar possível para a cinema, é por essa mesma vala que Salles arrasta todo o núcleo da sua narrativa. Se bem que, de posse de uma produtora como a Globo Filmes em vida, fica até difícil situarmos o que sobra de recurso e decisão criativa de um cineasta e o que é imposição bancada pelo financiamento em vigor dessas grandes empresas.
Mas talvez tudo seja uma coisa só. Com exceção do segmento na delegacia de polícia, toda a atmosfera formal e conceitual do filme reverbera essa pegada de propaganda da Volkswagen com uso de IA para reconectar gerações distintas ou de publicidade de banco com mensagem de fim de ano (um deles a propósito figurada pela mesma Fernanda Montenegro).
São posições muitos ruins e insuficientes para o cinema estar, se inspirar. A lógica da prática cinematográfica está em buscar romper minimamente com os códigos pré estabelecidos por algo tão risível como a veia publicitária.
Mas assim como Cidade de Deus (2002) fez às portas desse novo século, o filme de Salles (ou o original Globo Play) em questão também opera nesse senso da apologia, mais do cunho familiar ou de metas pessoais de parte dos Paivas, do que problematizar alguma relação temática ou em termos macroestruturais que sejam em torno do que tenha sido a ditadura militar para além do que a mídia tradicional tenha ditado como registro oficial ou historiográfico.
Considerando o filme na sua estrutura total, até ficamos com a impressão de que ele dá conta de uma narrativa macro contextual. No entanto, e voltando ao índice subjetivo da discussão, isso fica bem latente quando pensamos a relação desse apartamento entre o topo e a base dos personagens presentes na obra.
Prova maior disso é a figura da empregada. Única persona dissonante ou real que interesse ali, nunca temos a possibilidade de uma concreta visão sobre ela. E no único momento em que isso poderia vir, de fato se operacionalizar, no instante do acerto salarial e sua consequentemente demissão, acontece uma elipse.
Justamente quando conseguimos entrar no espaço da personagem, o quartinho cedido pela família burguesa como manda a cartilha patrão/ empregado nesse país. O corte no tempo do filme nos impede que saibamos mais sobre como essa mulher se encaixaria, de fato, ali.
Enfim, ela não se encaixa, apenas "vê de fora", não entende o que estaria acontecendo, esse é um ponto do filme. Um outro fio, justo na minha percepção, se dá na escolha com que a violência é elaborada ou obliterada, a exemplo do que vemos em Motel Destino (2024).
Entendemos o estado violento e de tensão do período, mas isso nunca se materializa eventualmente por meio da ação. O que por si é uma boa escolha, não apenas conceitual, mas ideológica que a direção assume. Juntamente com o fator da construção dramatúrgica de Fernanda Torres, esses são dois dos melhores pontos que o filme mobiliza.
A atuação, aqui, não se trata bem da performance em si, mas em como a personagem da Eunice opera num nível de contenção emocional quase irredutível. E isso dialoga muito bem com uma construção que dispensa excessos, geralmente relacionados a situações de discussão, brigas e todo tipo de conflito que, se ordinariamente pontuados, só geram ruídos para o desenvolvimento dos eventos na ficção.
Não é sobre a cotação da atriz para o Oscar, mas muito mais a respeito da sobriedade de um tipo menos comum na recente cartela dramatúrgica da cinematografia brasileira contemporânea.
Figuras essas que vemos muito frequentemente no cinema daquele que certamente é o maior cineasta vivo do Brasil e no mundo também, Júlio Bressane. Um artista que se os diretores e o público em geral estudasse mais a respeito, entenderiam melhor por que o cinema brasileiro é o melhor do mundo. Isso não vem das mãos de Salles, Daniela Thomas e companhia, definitivamente.
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