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Cabra Marcado para Morrer: O filme manifesto da redemocratização brasileira

  • Foto do escritor: danielsa510
    danielsa510
  • 15 de set. de 2019
  • 4 min de leitura

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Foto: Memorial da Democracia

Direção: Eduardo Coutinho. Roteiro: Eduardo Coutinho. Produção: Leon Hirzman, Zelito Viana. Fotografia: Fernando Duarte, Edgar Moura. Montagem: Eduardo Escorel. Som: Jorge Saldanha. Música: Rogério Rossini.



Brasil, 1985. Mais de duas décadas após o Golpe Militar de 1964, o País dava início a um lento processo de retomada do seu regime democrático. As eleições, ainda que indiretas, recolocaram um presidente civil à frente da nação. E se a Tancredo Neves estaria incumbido o papel de reestabilizar a democracia brasileira, foi também na metade dos anos 1980 que o cineasta Eduardo Coutinho escreveu um dos projetos mais importantes da cinematografia nacional com seu Cabra Marcado para Morrer (1984).


idealizado inicialmente como um longa de ficção, o trabalho teve início em 1962 quando Coutinho, integrante do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), decidira filmar a luta das Ligas Camponesas na cidade de Sapé na Paraíba (PB). o argumento do filme partira do assassinato de João Pedro Teixeira, líder do movimento que buscava melhores condições trabalhistas e de vida para o povo da região.


A ideia do projeto seria de reconstituir os eventos que antecederam o assassinato do líder camponês. O filme mesclaria realidade e representação na medida em que o roteiro fosse a base de um trabalho encenado por parte dos próprios trabalhadores e moradores da cidade paraibana. Mas os conflitos entre os operários e os chefes dos engenhos alterou a concepção do longa. A polícia cercou o local e Coutinho com sua equipe só retornam para finalizar o filme 17 anos depois.


“Cabra Marcado” então se torna um filme sobre ele mesmo. E essa verve metalinguística novamente dá a tônica na nossa produção cinematográfica nacional. Mas o projeto não assume esse traço unicamente por uma questão de linguagem. Porque na verdade, a película só teria a força que tem devido às circunstâncias que que permearam sua feitura. A denúncia de toda uma classe e um povo subjugado pela inexistência dos direitos trabalhistas reverbera com mais intensidade pelo testamento que cada uma das personagens divide com a câmera.


Há o testemunho, que é o traço característico do documentário contemporâneo, mas ele emerge em nosso filme não como uma verdade a qual Coutinho busca extrair a todo custo. Pelo contrário. O documentarista está o tempo inteiro ali. Nós o vemos e sentimos sua apreensão e o extremo cuidado empregado a cada depoimento compartilhado. Mas quem irá imprimir a verdade no negativo do filme são as pessoas que entregam seus olhares àquela estória.


Por isso a escuta é um ponto essencial desse trabalho. Uma vez que todas as “entrevistas” realizadas se despojam daquele olhar oficial que o telejornal, sobretudo ali nos anos 1980, empregavam a si. A captação independia das condições de espaço ou tempo. A equipe montava seu cronograma de execução e partia para campo. Na rua ou numa casa, num galpão ou numa várzea, a potência do registro estava na prosódia. Naquilo o que aqueles personagens tinham para dizer.


E essas pessoas também são, sem dúvida, a base desse documentário. É muito forte pensarmos que essa leitura se dá não somente porque a viúva de João Pedro, Dona Elizabeth Teixeira, tenha entrado na clandestinidade por anos e se separado de boa parte dos filhos. Ou porque o agricultor e integrante das Ligas Camponesas, João Virgínio tenha sido torturado por meses e preso ao longo de seis anos pelos Militares. Vamos pensar para além do caráter de excepcionalidade de suas estórias. Vamos além.


Porque o que vemos no fundo das falas de cada um desses cidadãos são um mosaico de um Brasil que além de lutar contra a negligência do Estado, travava a busca de uma identidade perdida ao longo dos últimos 20 anos de regime ditatorial. Na verdade, essa identidade sequer havia se estabelecido ainda. Já que tanto para o homem do campo quanto para as associações mais estruturadas das metrópoles, a luta pelos direitos trabalhistas era uma pauta em emergência.


Assim como se tornava emergente esse ensaio de democracia que iniciou-se em 1985. Coutinho finalizava seu trabalho, foi ao encontro dos personagens centrais da narrativa, buscou reaproximá-los (tendo conseguido com alguns e outros não), mas sem dúvida o realizador conclui seu projeto que aos nossos atentos olhos nos são como a autêntica metáfora de um Brasil em transformação. E que não mais podia se omitir com as injustiças de um modelo oitocentista e atrasado.


“Cabra Marcado para Morrer” é uma amálgama de muitas outras colocações. É um exercício de afirmação de um cinema que se engrandece por sua própria forma e não pelo formato imposto pela TV, por exemplo. É também, certamente, o filme manifesto da redemocratização brasileira. Ele é uma síntese da fala de João Virgínio, que diz "não haver nada como um dia após o outro, com uma noite no meio e Deus em cima".


É a voz de quem sabe o quão perigoso é pensarmos um regresso à ditadura, aos atos de inconstitucionalidade. Como o pedido de impeachment de uma presidente eleita democraticamente, ou do acidente de percurso, próprias das contradições do fluxo democrático, que culmina na eleição de um presidente que tem na caraterística proto-fascista sua marca maior. Enfim, do ódio que cega a esperança na construção de dias melhores.


 
 
 

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