First Reformed: reverência e referência de um cinema autoconsciente
- danielsa510

- 15 de fev. de 2019
- 4 min de leitura

Direção: Paul Schrader. Roteiro: Paul Schrader. Produção: Brian Beckmann. Fotografia: Alexander Dynan. Montagem: Benjamin Rodriguez Jr. Música: Brian Williams. Efeitos Visuais: Chandra Mouley Atray.
Sem rodeios, First Reformed (2018) é um dos melhores filmes da temporada 2018/2019. Ele leva consigo o peso de ser uma obra cuja assinatura é feita por um dos mais prestigiados roteiristas da história do cinema norte-americano: Paul Schrader. Mas o interessante aqui é notar que a maior força do longa vem do fato de ele se basear em outro trabalho de um grande mestre da cinematografia moderna: Ingmar Bergman. E na percepção do diálogo entre esses dois realizadores, o uso das referências aparece como um positivo detonador de questões em forma e conceito.
Na trama, Toller (Ethan Hawke), um ministro de uma pequena congregação no norte do estado de Nova York, lida com o crescente desespero causado pela tragédia, preocupações mundanas e um passado e presente atormentado entre vícios e desilusões. Logo, estamos diante de um trabalho bastante denso. No que diz respeito ao seu gênero, ele se desenha como um drama, mas leva consigo também variações tonais do thriller, e mesmo do suspense. O filme modula esse peso a partir de duas abordagens paralelas.
Uma delas liga-se ao componente das imagens e ao modo como elas exprimem alguns sentidos determinantes para a atmosfera que o filme tem. Há durante todo os seus 113 minutos de duração uma sombra mórbida que acompanha tanto Toller, quanto alguns dos personagens que estão ao seu redor. Quando entramos nos aposentos do reverendo, a luz parece insuficiente, e as noites, invariavelmente silenciosas. A densidade desse universo que o longa constrói surge mais dessa criação soturna e menos de uma representação mais gráfica dos eventos que ele desenvolve.
As metáforas visuais são, por isso, um elemento muito bem explorado dentro da ideia de uma narrativa em primeira pessoa que o filme adota. Muitas vezes, elas são utilizadas como uma provocação para ideias antagônicas. Vemos uma cama bagunçada enquanto uma narração ao fundo nos fala sobre o valor do orgulho. Que orgulho um religioso poderia sentir diante de um sentimento de inação, da melancolia?
Há, por essa razão, uma dissonância instigante nessa construção, e o jogo é sentirmos ela se desenvolvendo diante de nossos olhos. Isso mostra o quanto Schrader atenta à importância de o roteirista não subestimar a percepção do seu espectador. Da relevância de deixá-lo se levar pela sugestão daquilo o que a imagem ou o plano do filme mostra/diz. Uma vez que isso é narrar visualmente.
Uma camada a frente, entretanto, o sentido do filme traz esse pesar que destacamos anteriormente. Falando de uma construção em nível conceitual bastante dura e pessimista sobre a vida e a nossa atual conjuntura contemporânea. A obra consegue costurar uma sólida teia formada pela tríade do niilismo, da violência e do terror. São ganchos temáticos de uma densidade elaborada e que opera em função do conceito que o filme assume para si. Não se tratando de um gesto meramente ilustrativo, mas sim, efetivo do exercício da realização fílmica.
Esse traço pessimista, é importante dizer, não tem uma perspectiva sadista ou unidimensional em torno das personagens e dos eventos que as cercam. Sobretudo na figura de Toller, há uma espécie de indeterminação afetiva que não conseguimos acessar na sua essência. Ela é legítima porque é gestada no seio de um contexto de indefinições em diversos campos, sejam eles políticos, econômicos ou sociais. Assim, percebemos que esse protagonista tem o gene das problemáticas contemporâneas como um monstro a ser vencido, assim como os homens da modernidade também estiveram confrontados por tantas questões que foram colocadas a eles ao longo de todo o século XX.
Esse é um ponto relevante da reflexão acerca do filme porque nos leva ao encontro do cinema de Ingmar Bergman. Seria First Reformed um remake de Luz de Inverno (1963)? Não, necessariamente. O longa de Schrader parte do argumento do clássico de Bergman, e retoma alguns pontos bastante específicos da obra prima do mestre sueco. Sim, em ambos os filmes a premissa é a mesma: a estória de um reverendo que entra em crise existencial após contato com um casal, cujo marido revela problemas de tendências suicidas.
Nesse enredo, o ceticismo exarcebado e dividido pelos personagens de ambos os filmes os condenam de modo muito semelhante. Tanto Toller quanto Tomas (Gunnar Bjornstrand) estão presos dentro de si, acorrentados por uma espiral sufocante onde a violência maior vem da falta de empatia com o outro. Pode ser um gesto de desagrado, ou uma palavra de recusa e desaforo. Ou mesmo do desespero ante o horror da vida cotidiana, diante da percepção que essas personas têm da impossibilidade de dar conta das questões do seu microcosmo ao mesmo tempo em que se perguntam sobre o que fazer para agir em uma escala macro cósmica ou global. Eles são, no maior dos casos, a forma mais feroz da contradição de um mundo incapaz de se medir ou de mediar.
Mas assim como Bergman poupa Tomas, Schrader também o faz com Toller. A conotação trágica em First Reformed é tão inflexível quanto o rigor formalista que o diretor imprime em cada plano da tela. Essa seria, à propósito, mais um índice desse enrijecimento que cria uma couraça a mais no longa e instiga um audacioso jogo de afastamento ou imersão por parte do espectador em sua condição de apreciador. Entretanto, a reverência ao exercício autoral e autorreferencial pode ser tomada como uma assinatura final deste filme.
Afinal, todos os seus atos nos conduzem a um clímax cuja referência máxima é sem dúvidas Taxi Driver (1976). E quando Toller se vê diante do espelho da inevitabilidade do ato de dar um fim a toda forma de sofrimento e angústia que o afingia, ele se torna Travis (Robert De Niro). Ele é a metáfora visual desse cinema que nos pede um olhar mais atento para que, mesmo diante de um desfecho trágico, entendamos que a discussão passa também pela importância da reflexão sobre a referência e a autoria cinematográficas. Uma vez que são tópicos como esse que garantirão, assim como têm garantido, uma imprescindível vida longa ao gesto de se fazer cinema.



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