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Imagem e Palavra: Uma iconoclastia referencial godardiana

  • Foto do escritor: danielsa510
    danielsa510
  • 25 de mar. de 2019
  • 4 min de leitura

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Direção: Jean-Luc Godard. Roteiro: Jean-Luc Godard. Montagem: Jean-Luc Godard, Fabrice Aragno, Jean-Paul Battaggia, Nicole Brenez.



Ao menos uma vez na vida as pessoas deveriam ter a experiência de assistir algum filme de Jean-Luc Godard. Hermética, densa e provocadora, a obra do mestre francês exige algum repertório, é bem verdade. Mas as ideias que ele propõe pelo conjunto de seus trabalhos são tão relevantes que a acessibilidade deles pode e deve ser colocada em contra plano quando consideramos o impacto a que nos submetemos. Seu mais recente longa-metragem, Imagem e Palavra (2019), é mais uma evidência de tudo isso.

Você ainda se lembra de como, há muito tempo, treinamos nossos pensamentos? Na maioria das vezes nós começamos de um sonho. Nós nos perguntamos como, na escuridão total, cores de tal intensidade poderiam emergir dentro de nós. Em voz baixa e suave. Dizendo coisas boas. Questões surpreendentes, profundas e precisas. Imagem e palavras. Como um pesadelo escrito em uma noite tempestuosa. Sob olhos ocidentais. Os paraísos perdidos. A guerra está aqui.

De modo integral, essa é uma das sinopses ou storylines do filme. Importante colocar inicialmente que, qualquer tentativa de definir ou “explicar” Godard pode soar ingenuidade. Não pelo fato de a obra do diretor ser inexplicável. Desde o início dos anos 2000, o realizador tem pesquisado e experimentado bastante o formato de filme ensaio. Ele começa sua carreira iminentemente no cinema em 1955 e nesse meio tempo de 64 anos de intensa produção, seus filmes transitaram entre diferentes vertentes do cinema e das artes do vídeo.

Falando mais especificamente do exercício cinematográfico, o diretor segue em Imagem e Palavra uma linha que repensa o filme em suas mais distintas formas de ser. Em termos concretos, o longa é um documentário ao passo que ele retoma a ideia do arquivo fílmico e historiográfico para refletir sobre o poder, influência e significação das imagens que o cinema, a televisão e o vídeo proveniente das novas tecnologias têm em nossa realidade. Essa reflexão, entretanto, é feita a partir de um ideal que entende a cinematografia pelo prisma iconoclasta.

Claramente aqui, o filme se materializa por meio de suas correntes primárias. Uma ligada à ideia do arquivo e da memória histórico-fílmica. E outra relacionada ao ensaio poético em uma reflexão sobre as contradições do mundo contemporâneo em que nos inserimos. Essa característica do resgate histórico é tomada na obra sobretudo pela colagem dessas imagens que materializam o cinema como linguagem desde 1895.


É claro que, nas mãos de Godard, o “footage”, ou o material bruto do compilado das imagens de que ele dispôs, passa por um intenso processo de remontagem e realocação tanto em termos de ordem quanto de sentido. Cada excerto, seja de um filme de Buster Keaton ou de uma filmagem captada pelas câmeras de um smartphone, juntam-se em uma teia conceitual onde a montagem é mais que um método padrão na experiência do cinema. Ela é a possibilidade de feitura do filme a partir de uma perspectiva iconoclasta, onde a ideia é mais de tirar-nos do lugar confortável da passividade espectatorial e fazer-nos olhar para o cinema como “manipulação”.

As aspas entrecortam evidentemente uma frutífera intenção de um realizador que entende e ajudou a codificar o cinematografia moderna e contemporânea como as entendemos hoje. Portanto, se Godard corta, quebra, subverte e distorce o que vemos e ouvimos na tela, é em função de nos fazer pensar sobre esse possível no cinema, ou daquilo o que não conseguimos pensar diante de uma narrativa linear e classicista e cujo efeito muitas vezes não ultrapassa a anestesia de uma experiência cômoda, quando não, alienante.

Não se trata, obviamente, de uma idolatria à figura de Godard enquanto mestre reverenciável. Trata-se da pertinência com que um artista, na força dos seus 79 anos de idade, nos propõe um modo de olhar a arte e a política sob as lentes do questionamento. Por que a história do homem moderno e contemporâneo deve ser refletida sempre a partir de uma perspectiva Eurocêntrica? Teria a nossa história de ser regida mesmo pela vertente etnocêntrica e da barbárie?

A vertente crítica certamente é um caminho na condução desse debate. E estarmos abertos à proposta desse filme “recortado”, fragmentado em som e imagem e cuja coerência ganha corpo a partir do seu movimento dúbio de negação e aceite de tudo o que a arte do cinema é. Por isso a dificuldade citada inicialmente pode ser uma espécie de barreira a ser vencida. O estigma do filme cult está para além de tudo isso quando consideramos a emergência da reflexão que Imagem e Palavra nos pede.

Na verdade é interessante como o ato da realização em si é quem define aquilo o que cada obra é. Se Michael Haneke em seu Happy End (2017), tenta problematizar a condição do imigrante em uma Europa cada vez mais recrudescida, mas não o consegue fazê-lo plenamente, é em função da abordagem. E o ponto é que, naquilo o que o cinema clássico narrativo, mesmo em sua ordem contemporânea, não consegue dar conta; a cinematografia da inventividade godardiana tem êxito.

Godard abre mãos das amarras dos códigos linguísticos para pensar novas formas de desenvolver um conceito. Isso é o que os mestres fazem. Alguns sobre um momento de grande inspiração, outros em um instantes de menor fortuna, é bem verdade. O que importa é que, nessas idas e vindas do nosso amor pelo cinema, sempre haverá as obras para levarmos no coração. Imagem e Palavra é uma delas, definitivamente.

 
 
 

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