Infantaria: a família brasileira como um micro campo de batalha
- danielsa510

- 16 de jan. de 2023
- 3 min de leitura

Direção: Laís Santos Araújo. Roteiro: Laís Santos Araújo. Produção: Pedro Krull. Montagem: Laís Santos Araújo. Fotografia: Wilssa Esser. Direção de Arte: Lyara Cavalcanti. Som: Leo Bulhões. Música: Hans Zimmer.
Dependendo da sua composição, o seio da família no Brasil pode ser um micro campo de batalha. Essa é uma das mais contundentes reflexões que o curta-metragem de Laís Santos Araújo coloca em cena. Há uma intencionalidade de se problematizar um tema delicado como o aborto, mas não somente ele.
O filme parte dessa linha narrativa para então ir costurando toda uma teia de sentidos acerca de outras inflexões sobre o que seria estar no "corpo de uma mulher" na contemporaneidade, seja ela uma pessoa adulta ou uma criança saindo da segunda infância. E apesar dessa proposição operar muito em primeiro plano, nunca sentimos, ao longo dos 24 minutos da obra, que ela se fecha dentro disso somente.
É realmente um trabalho que é exógeno, ou seja, se estabelece no campo da forma e do conceito, para "fora". Fora dos limites que o cinema de gênero propõe, afinal, que tipo de filme é esse? É um drama familiar? Um pós-terror ancorado na crítica terceiro mundista? Ou uma comédia de gênero bastante consciente do seu discurso crítico? Certamente, tudo isso ou nada também. Não há rótulo demarcado que se faça determinante aqui. Isso é algo ótimo.
Porque ainda refletindo sobre essa posição, ir para esse "fora" nos aponta uma ideia muito forte desse extracampo que da conta de velar certas idiossincrasias que somente o cinema consciente do seu futuro consegue lidar, enxergar e nos apresentar. Não é que o filme deixe de nos dizer o que coloca na tela. Ele o faz, mas não pelas vias da obviedade.
A objetividade cinematográfica é, de fato, uma dádiva no exercício da realização, mas apostar nessa (des)obviedade discursiva valida essa maturidade no fazer fílmico para além do gênero. É nesse sentido que a câmera aqui delimita o que vemos na nível do plano, mas sempre mantem essa outra margem de demarcação daquilo o que está fora dos limites da borda do quadro.
Esse "fora" não é um desvio, uma falha que seja. É a métrica exata do filme nos dizendo para onde olhar além daquilo o que a imagem aponta. Ele dá tudo nessa construção (a mãe, os filhos, a realidade e o onirismo numa mesma medida). Não há descompasso algum dessa entrega. Para vermos essa imageticidade que está nessa zona extra da obra, temos de olhar através da imagem em si.
Ver através desse jogo que o filme propõe entre aquilo o que não se vê materializado "no campo" e aquilo o que é desejo sendo manifestado a partir da presença de seus personagens. Na junção disso tudo, Laís não faz questão de criar lados de identificação espectatorial, ainda que sua decisão opere a significação final sobre as fissuras de um Brasil ainda demarcado pela dureza no trato de certos questões, como se dá com o sexo e a sexualidade na juventude.
Nada disso, claro, colocado por uma tabela didática, mas flexionado por uma cativante estrutura de sugestões e economias. A ânsia de Joana pela inserção na vida adulta é a mesma que ainda a envolve na leitura dos contos de uma vivência infantil. É o vestido de princesa no dia da festa de aniversário e o príncipe mirim transnacionalizado no seu cavalo branco.
Antes do beijo acontecer entre os dois, a brutalidade e o ressentimento do irmão que corta a cena ao meio emerge. "Rapariga!". O bem e o mal não configuram esferas nessa narrativa do futuro. Não é sobre "esconder" demais. O que o filme nos pede é exatamente esse desprendimento de não estarmos refém de uma polarização representada. Quando a juventude, enfim, chega para Joana, ela não está preparada.
Seu choro e desalento só encontra na figura da mãe (agora em extracampo por se tornar uma voz apenas) um último refúgio para a resolução dessa inserção numa nova realidade. No outro lado do plano, o travelling na sala de estar dessa família, encontra na força de ação do irmão, Dudu, a contra medida dessa desestabilização de um país vulnerável nas suas referências e valores.
A denúncia desse que está perto é a prova do distanciamento e ignorância de um Brasil envolto em sombras. A pausa dramática antes da última palavra dita no filme, por sua vez, coloca realmente em primeiríssimo plano o terror que o patriarcado carrega desde que o mundo assim se entende. Laís é definitivamente uma realizadora para acompanharmos muito atentamente e esse curta-metragem é uma prova irrefutável dessa precisão que a sua assinatura carrega.



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