Leia Meus Lábios: desejo e dever na relação escopofílica
- danielsa510
- 1 de nov. de 2021
- 2 min de leitura

Direção: Jacques Audiard. Roteiro: Tonino Benacquista, Jacques Audiard. Montagem: Juliette Welfling. Direção de Fotografia: Mathieu Vadepied. Produção: Philippe Carcassonne. Música: Alexandre Desplat
A França de Jacques Audiard não perdoa seus personagens. Interessante como esse clima pesado e hostil não é dado de modo imediato. Para isso, o diretor evoca muito dessa atmosfera dramática que mescla traços do thriller, do filme de crime e do suspense policial para a construção da sua escada dramatúrgica.
Nada é colocado, no entanto, de modo apressado. Tudo é posto em cena por meio de chaves. Primeiro a aproximação entre a protagonista Carla, suas limitações e desafios cotidianos. A sequência é destinada à inserção do seu outro lado, no caso, o incorrigível Paul e sua vida errante.
Gosto muito como a premissa da trama em si não obedece a um padrão pré-definido daquilo o que já sabemos ou intuimos do que vai acontecer. Em alguns momentos Audiard até parece jogar um pouco com isso. Mas em linhas gerais, os acontecimentos se desdobram a partir de um sistema de grandes indefinições.
O centro do problema desde o início do encontro entre os dois personagens reside nessa dívida em dinheiro que Paul não tem como pagar. O modo como Carla se conecta nessa rede interrelacional é a maior potência do filme a partir da sua segunda parte.
Desse ponto em diante, é o câmbio entre esse homem e mulher que modula as ações da estória. Curioso como Carla acaba se tornando em parte ao que Paul o é. Juntos, eles terão de ir até o fim nos seus planos e na tomada de responsabilidade pelas consequências dos seus próprios atos.
Apesar dessa solidez temática, impressiona como o interesse de Audiard não se concentra nesse gesto da meta contação da narrativa. É pelo prazer do modo de contar que a gramática cinematográfica pode evocar que mobiliza o realizador. É aí que a escopofilia assume a primeiro plano do longa na sua zona mais profunda.
Esse prazer daquele que olha pelo poder de ver sem ser visto assume em distintos instantes do filme uma interessante função. Quem observa a figura de Carla em seus momentos de intimidade quando ela se imagina sozinha dançando usando ora as roupas do objeto de seu desejo (Paul), ora quando baila semi despida na solidão do seu apartamento?
Somos nós. São os espectadores que são convidados a assumir esses intertítulos imagéticos naquilo o que poderíamos interpretar também como fluidos suspiros entre o suspense e o mistério dos capítulos da obra. Esse ver tem um tom muito bonito que remete bastante a uma estética do cinema dos primeiros tempos.
Dessa imagem que se materializa escopofílica não somente porque vemos alguém olhando um outro. Mas porque ela tem contornos gráficos que validam isso. É a aura metonímica, a construção de uma visibilidade incompleta; assim como o modelo dialético (no campo do conceito), das situações que dependem das ações e reações que definem as relações entre esses personagens.
Tudo isso apresentado como uma parte específica do filme e que valida e potencializa sua proposta enquanto forma de expressão que não se esvai no sopro de estória contada. Há sempre mais nessa cinematografia que está se pensando mesmo quando essa reflexão não está exacerbada, mas se faz evidente na comédia exibição detalhada dos seus tópicos frasais.
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