Mais Pesado é o Céu: a estória como manifestação da expressividade humana
- danielsa510
- 12 de ago. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 19 de ago. de 2024

Direção: Petrus Cariry. Roteiro: Rosemberg Cariry, Firmino Holanda, Petrus Cariry. Direção de Fotografia: Petrus Cariry. Produção: Bárbara Cariry. Som: Érico Paiva, Danilo Carvalho. Música: João Victor Barroso. Direção de Arte: Sérgio Silveira, Lana Patrícia.
"Um cineasta só merece esse nome a partir do momento em que sabe o que está fazendo". Falando sobre o coeficiente do exercício técnico da arte do cinema a partir de uma reflexão de Claude Chabrol, Jacques Aumont em seu, "Teorias dos Cineastas", nos apresenta uma relevante problemática sobre o que faz de um realizador um autor.
Entre tantas coisas, ter ciência a respeito do que faz de uma estória uma manifestação da expressão humana figuram entre essa prática. Na historiografia recente do cinema cearense da última década, e mais especificamente dos últimos cinco anos, são múltiplas as obras que compartilham códigos e conexões esquemáticas e conceituais de variadas ordens.
No caso desse novo filme de Petrus Cariry, o diretor abre mão de uma vertente para coadunar com uma outra de ordem distinta. Fazendo uma menção ao estado da primeira ordem, seu trabalho antecessor, o excelente "A Praia do Fim do Mundo" (2021), correlacionou muito bem os ideais de um trabalho mais contido - espacial e dramaturgicamente - centrado naquilo o que uma narrativa "de pandemia" poderia dar a ver e, mais que isso, se pautando sobre o que faz a consciência do diretor em sua arte, seu ofício e seu pensamento.
Quando nos voltamos para o segundo ponto da discussão, é como se entendêssemos Petrus abrindo mão de quase todos esses preceitos para fazer um filme de conveniência mesmo. Um homem, uma mulher, um bebê, uma casa velha e um restaurante de beira de estrada.
Enquanto unidade formada por esses tipos, esse microcosmo parece dar conta de uma estrutura até encaixada numa proposta mais resoluta e sóbria de construção fílmica. Problema é que o conceito dessa vida dura de pessoas na linha da pobreza não consegue encontrar eco na dinâmica e na proposta do filme enquanto um processo finalístico em si.
Uma vez que o trabalho é uma das notas entoadas por Antônio como esse trabalhador "faz tudo" ao longo da vida, nada justifica a estática que toma conta do personagem durante toda a obra. E aí, ao invés de isso, possivelmente, ser um determinante para que a figura se coloque, no mundo e na tela, a partir do que ele se presume ser, o filme acaba ocultando tudo isso em detrimento de uma visada de caréstia e da exploração do drama humano.

Ou seja, ele vai pedir esmolas na rua (foto) ao invés de tentar um ofício que seja para contornar aquela situação. Falo disso ao lembrar um dos melhores exemplos de como as dificuldades de uma vida no Brasil da última década podem ser cinematograficamente pensadas e problematizadas. "Arábia" (2017), de Affonso Uchôa e João Dumans, faz exatamente isso.
Cristiano (Aristides de Sousa), longe de ser o cidadão modelo da sociedade idônea no sul global, vai em busca do trabalho não como uma fissura no alcance de um sonho que seja. Ele só quer viver dignamente e entende que se colocar em curso por diversas partes do país (num verdadeiro road movie) é uma via possível, mas não garantia, de "estar cidadão" no Brasil pré-Bolsonaro. Ele tenta até o fim, tenta até não conseguir mais, não aguentar mais.
A posição que o filme de Petrus se coloca é, nesse sentido, o de uma proposição que parece muito contaminada por um olhar anacrônico e enviesado de uma velha cinefilia, de um roteiro, aqui obviamente assinado também por Rosemberg Cariry, e por isso, de fato, escrito e idealizado nos moldes dessa posição.
Um estado do filme que culmina, logo, na exposição da figura da mulher como essa máquina de desejos com/sem culpa e que usualmente, na dinâmica da narrativa, conduz a construção de situações-limites que jamais são elaboradas ou dialetizadas de alguma forma por parte da figura condutora dessa parte da ação, nesse caso, Tereza.
Portanto, a questão aqui parece não ser a dificuldade imposta aos protagonistas pelo mundo injusto e cruel. O peso da mão sobre esses indivíduos se consuma nas decisões daqueles que pensam tais tipos e realizam o esquema na direção. Ou seja, nesse caso, os maiores inimigos desses brasileiros ficcionalizados na narrativa são, ao que tudo sugere, os próprios autores da estória.
O que, no fim de tudo, é uma pena, haja vista ser o valor pelo trabalho um dos temas que mais forças confere ao cinema brasileiro na sua história a alcunha de grandes estórias, de Leon Hirszman a Carlos Reichenbach, passando por Andrea Tonacci, Affonso Uchôa ou mesmo Marcus Curvelo e Leon Sampaio.
Enfim, é sobre ceder à estética da violência ao cabo de tudo. E nesse caso, concordo com Ainouz a respeito do contraponto que o realizador pode fazer ao permitir que seus personagens não cedam ao impulso que determina a posição do inimigo na historiografia contemporânea do nosso povo.
Porque no momento em que colocamos isso na boca e nos gestos daqueles que dizemos ser os nossos protagonistas, não há mensagem alguma a ser dita para além do reforço da barbárie como via de mão única, estrada dividida onde sonho algum é possível. Importante considerarmos isso, refletirmos criticamente a respeito, para além da alegria latente de uma produção local cearense que mostra um fôlego esperançoso e de reafirmação do nosso cinema no contexto nacional.
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