Marte Um: as lógicas de agenciamento do desejo
- danielsa510

- 8 de set. de 2022
- 5 min de leitura

Direção: Gabriel Martins. Roteiro: Gabriel Martins. Produção: André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Maurilio Martins e Thiago Macêdo Correia. Montagem: Gabriel Martins, Tiago Ricarte. Fotografia: Leonardo Feliciano. Som: Tiago Bello.
Há 200 anos, quando pensamos nossa independência, e aos mais de 500 dias e noites considerando nossa história existencial em si, pode ser a utopia do sonho que nos ajuda a encontrar uma definição sobre o que venha a significar a experiência do Brasil na historiografia da humanidade.
Não somos nada no risco dessa linha temporal e ao mesmo tempo, junto com a mesma força restituitiva que nos é característica, não há escala que meça nosso valor enquanto povo, nação.
E as grandes narrativas, os épicos dos nossos tempos, certamente passam pela leitura dessa amálgama de elementos que não são unicamente espetaculares pelos traços fantásticos que eles mobilizam.
Isso foi o que Gabriel Martins, no exemplo de tantos outros realizadores do cinema brasileiro nos últimos 120 anos, tem se debruçado sobre. Hoje, a síntese entre um fazer discursivo mais indireto e uma crítica de traço mais objetivo e transparente é o que dá escopo ao cinema deste realizador mineiro.
De fato, não soa fora de ordem partirmos da análise do filme pela especulação da mudança de olhar por que o artista possa ter (e estar passando neste instante da sua estória, da história do nosso país). Afinal, o Brasil dos seus primeiros trabalhos ainda reverberava o status de uma nação sob gerência.
Os laços que apertavam (e apertam) nossas bases sócio - políticas sempre pareceram estar sob a égide de um rompimento iminente. Quando os eventos pós 2014 sucederam, a violência presente nesse Estado em desgoverno era parte do reflexo das complexidades que os filmes do realizador exortavam.
A violência, os atritos sociais e a desigualdade que colocava toda essa estrutura em ebulição eram refletidas nas narrativas das suas obras, a maior parte delas feitas em parceria com Maurílio Martins. Passado esse desenho, e apesar dos rompimentos sem precedentes causados pela pandemia da covid-19, Martins parece sedimentar nesse primeiro longa-metragem solo uma proposta de olhar calcada na esperança de um futuro melhor, ainda que as dificuldades desse presente assombroso ainda persista.
Por isso que seu filme não é um trabalho de alienação. Pelo contrário, é uma obra que entende de modo muito preciso como a representatividade racial pode se estabelecer na cinematografia de uma nação como o Brasil. Gosto bastante de como o ideal do conflito é gerido e administrado aqui. Não estamos diante de um "conto de fadas" contemporâneo.

A realidade da família Martins é difícil, mas em nenhum momento nossos personagens estão lutando pelas suas vidas em função de algum tipo de vitimismo ou representação celebratória das massas da sociedade brasileira. A soma desse grupo é um desenho do Brasil que ascendeu com a alvorada trazida pela virada dos anos 2000 e o projeto de nação do primeiro governo Lula e que tenta resistir a instituição necropolitica do governo instituído desde 2018 neste território.
Para apresentar esse contexto não há cartelas ou letreiros que nos diga onde a estória se situa. Ao invés diss, Martins expõe uma cena. Na imagem síntese disso: Deivinho analisa o dente recém tirado da sua boca numa noite de eleição presidencial. Ao fundo, os gritos de "É Bolsonaro!" nos situam na linha do tempo em questão.
Ou seja, diante do pesadelo à sua frente, o garoto internaliza sua atenção em si algo mínimo, uma unidade do seu próprio corpo tão pequena se comparada à tragédia social que iria assolar o país no dia seguinte. É nesse intervalo quadrimestral em que o filme se contextualiza.
E para além dos anseios do garoto, que deseja se tornar um astrofísico e participar de uma missão exploratória em Marte no ano de 2030, essa investigação do que é ser brasileiro se partilha pelos problemas pessoais da matriarca da família, dos desejos sustentados pelo pai de Deivinho em cima daquilo o que o jovem não quer ser (um jogador de futebol profissional) e da vivência da maturidade de sua irmã, Eunice.
Essa estrutura nuclear funciona muito bem porque ela nunca opera por compartimentação. Ao invés disso, Martins arranja sua dramaturgia em uma lógica de complementaridade.
Ou seja, os eventos ocorrem sempre em agenciamento, ainda que de uma sequência para outra, tenhamos uma situação de atrito direto (uma discussão durante um jantar) e outra de uma extrema expressão do exercício mais puro da nossa alteridade (a partilha de um segredo entre irmãos).
Isso por si é de uma coragem extrema da parte de Gabriel uma vez que o tom de situações tão díspares precisa ser muito preciso, elaborado. Por jamais soar exagerado, a prática da atuação do seu casting evoca essa presença irrepreensível quando o instante pede a impressão de um momento de específica emoção e outro de inesperada comicidade.
Ainda que não estejam necessariamente lado a lado, essas lógicas de representação presentes no filme são das melhores já estabelecidas numa produção brasileira na última década. Esse sentido de coerência também se aplica no modo como a organização do universo da narrativa se dá na sua totalidade.
A ambiência desse estado da voz negra não é retórico. Tudo remete isso na sua prática, mesmo. Da médica que atende o paciente e não receita uma pilha de remédios à princípio por entender que a vida humana precede o vício do gesto farmacolocêntrico, ao narrador da partida de futebol transmitido para rede de televisão à cabo e que verdadeiramente figura certamente como o único narrador negro de todo o canal esportivo).
São inflexões que soam como detalhes cênicos, mas que reafirmam na prática a política de um verdadeiro gesto de representatividade que importa nesse tempo. Não é algo lúdico, ilustrativo. É presente. Assim como também é forte a presença desse agenciamento de dissensos no microcosmo desses personagens.
O ato sem ponto de retorno, ou a tragédia que detona a crise final de todo o filme vem à muito anunciada. A figura de Flávio (Russo Apr) diz muito disso. Desse ser que está inserido nessa ambiência da classe média alta brasileira mas entende que seu lugar não é ali, sustentando a manutenção dos privilégios desse povo. "Qualquer dia desses eu vou tocar 'o loco' aqui dentro (desse condomínio) e vocês vão ver", diz o personagem em determinado momento do filme.
É sobre isso. Da crise que vem para fazer com que os Martins entendam que o fechamento desse ciclo que configura o período de outubro de 2018 a janeiro de 2019 exige muita coragem e consciência para tentarmos ser algo mais acima daquilo o que as pessoas que desejam a nossa morte intentam consumar ao legitimar um "projeto" como o de uma figura como Jair Bolsonaro.
Por isso que o desejo de Deivinho não pode esbarrar nos milhões de dólares que o projeto Marte Um exige. Para isso, se pode, sim, "dar um jeito", como evoca um dos líderes da família, Wellington (Carlos Francisco). Não é sobre fazer de qualquer jeito, mas acreditar que elaborar um plano para isso é possível.
Crer no amanhã é o que podemos fazer, enquanto olhamos para as estrelas que brilham nos nossos céus noturnos a cada oito minutos de antecedência em relação ao que nossos olhos passam a enxergar. Esse é o convite que o cinema de Gabriel Martins nos faz. Aceitar ser parte disso é nossa missão.



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