Matou a Família e foi ao Cinema: A independência da ideologia cinematográfica
- danielsa510

- 18 de jun. de 2019
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Direção: Júlio Bressane. Roteiro: Júlio Bressane. Montagem: Geraldo Veloso. Direção de Fotografia: Thiago Veloso. Produção: Júlio Bressane. Direção de Arte: Guará Rodrigues. Som: Walter Goulart
Brasil, 1969. O País vivia um dos momentos mais delicados da Ditadura Militar. Em diversos partes do território nacional, o confronto entre civis (ligados aos grupos armados ou não) e o Estado, se tornava mais intenso. As mudanças no plano econômico brasileiro só se comparavam ao incontestável endurecimento do regime. Estamos nos “anos de chumbo”. E em meio a esse conturbado contexto é que Júlio Bressane realiza seu inesquecível “Matou a Família e foi ao Cinema” (1969).
Imprescindível olharmos para a configuração do mundo em 1969. E se os golpes militares derrubavam a democracia em grande parte da América Latina, os movimentos contra-guerra e os que evocavam a liberdade sexual e de emancipação humana e social ganhavam bastante força no globo. E foi a reboque desse impulso que Bressane argumentou sua obra.
Duas moças mantêm um relacionamento secreto e um jovem transtornado mata sua família sem o peso ou o remorso da culpa. A proposta é simples. Porque “Matou a Família” é sobretudo um trabalho que exige uma compreensão a partir do contexto e também para além de tudo o que ele nos aponta ou apontou. Na tela, uma miríade de conceitos e discussões são postas em pauta com a sutileza já emergente do cinema contemporâneo e que apenas os realizadores que fundam a linguagem professam.
O filme é a metáfora do complexo momento que envolvia o País e já dava sinais claros da improbabilidade do regime ditatorial. Mas Bressane não panfleta. Sua crítica voraz se autentica através do exercício cinematográfico que se coloca a frente de seu tempo. O enredo de sua obra falseia sua ingenuidade e se vende como uma narrativa despretensiosa. Não importa. Porque o realizador sabia exatamente o que estava dando a ver.
E o que vemos? Um longa-metragem construído pela força da performance. E foi na forma que o diretor encontrou os pilares da obra. Pensar nos rostos graciosos de Renata Sorrah e Márcia Rodrigues em dois maravilhosos closes em um prólogo e epílogo nos são o filme se negando enquanto representação da realidade na medida em que se assume como gesto do belo nesse sopro de liberdade que configura a arte, o cinema. É o filme nos chamando para dentro dele, mas também dizendo: “Ah, pô! Vocês estão olhando o quê?”
Uma vez que o trabalho se coloca também como filme (e isso esse prólogo descerra) e representação. Num reforço permanente da ideia e reflexão da pessoa humana a partir de sua condição falha e perene. A escolha desse antinaturalismo que se contrabalanceia com outras sequências de longos planos fixos e ações performativas dos atores dotam o filme de uma autenticidade técnica que acompanha os avanços ideológicos que estavam a se gestar naquela década.
E na forma fílmica, como não falarmos da economia de planos? (fixos e com duração mais elástica) e que nos coloca já em um diálogo direto com a produção contemporânea. É a prosódia e sua força que nos remete a construção de cena de Ingmar Bergman. E o enquadramento com toda sua simetria de formas e precisão fotográfica tão notáveis no olhar de Stanley Kubrick. Assim, Bressane nos traz em suas concepções, o que há de melhor no mundo afora reconfigurando o trabalho em contexto nacional.
É claro que não falamos do complexo de vira-latas e a miopia da ideologia que rege a nefasta ideia da colonização. Já que se há algo que sacramenta o olhar bressânico é o ideal de independência de um fazer cinematográfico que, sim, se apropria de tudo o que o cinema tem de universal. Lançando mão com muita autenticidade dos signos que remetem a toda singularidade da cultura brasileira. Os temas estão ali enfocados mas não isoladamente. São algo maior.
A liberdade sexual é problematizada no longa e colocada dentro de um contexto expandido. Numa sociedade cheia de manias, onde a ignorância e a violência assumem diversificadas formas, a política precisa estar num balett indispensável junto à beleza do amor. Porque assim como a reflexão sobre a nação exige um estar progressista, o cinema enquanto expressão de nossa condição humana só será um indicador de independência quando a subversão for a ele um princípio. Norma incontestavelmente levantada por Júlio Bressane e sua obra.



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