O Animal Cordial: Abordagens para novas janelas interpretativas
- danielsa510

- 17 de jul. de 2019
- 3 min de leitura

Direção: Gabriela Amaral Almeida. Roteiro: Gabriela Amaral Almeida, Luana Demange. Montagem: Idê Lacreta. Fotografia: Barbara Alvarez. Produção: Rodrigo Teixeira. Design de Produção: Denis Netto. Direção de Arte: Raphael Vinagre. Música: Rafael Cavalcanti.
A partir de quais temas, tons e abordagens o cinema brasileiro é construído? Esses são bons pontos de partida para refletirmos, sobretudo, acerca da nossa cinematografia contemporânea. Considerando uma análise da parte pelo todo, é que a obra de uma realizadora como Gabriela Amaral Almeida se coloca em primeiro plano. Em sua estreia como diretora de um longa-metragem, ela expande em O Animal Cordial, parte dos códigos trabalhados nos seus curtas desde 2010.
O filme se desenvolve como um tenso conto acerca das variações do instinto humano. Na trama, um assalto a restaurante interrompe uma aparente tranquilidade entre Inácio (Murilo Benício), o gerente do estabelecimento, seus clientes e parte dos seus empregados. Presos em uma espiral da violência, patrão, funcionários, clientes e assaltantes entram em luta (física e psicológica) por suas vidas à medida que os papeis e a verdadeira natureza de cada uma dessas pessoas se desvela ao longo de uma madrugada.
Importante destacar-se a ideia de um núcleo, quase microcósmico, que o filme cria. Com isso, Gabriela aponta um direcionamento muito claro da obra em mesclar uma perspectiva de representação naturalista junto a outra cujo tom se aproxima mais de uma espécie de realismo fantástico modulado pelo terror. Nesses dois polos, o longa encontra pontos de equilíbrio que o colocam entre umas das obras mais originais da atual cinematografia brasileira.
O cinema de horror nacional foi, e ainda é, pouco reconhecido dentro da nossa historiografia. Por isso que O Animal Cordial se torna um trabalho tão distinto quando consideramos o contexto da atual produção de gênero no Brasil. E seguindo uma tradição, que tem na figura de José Mojica Marins seu grande expoente, o filme utiliza as convenções de gênero para repensar elementos político-temáticos da cultura brasileira.
Falar do tema é importante porque esse é um dos dispositivos com os quais a diretora constrói a base de seus filmes. Em “O Animal”, o trabalho, a violência do cotidiano nas relações sociais, a intolerância e os afetos são matérias primas que vão se moldando à medida que os eventos da trama se sucedem. Esses acontecimentos basicamente dividem-se em dois tempos distintos. Um moldado em uma atmosfera dramática clássica; outra ligada mais a uma tradição do terror e do suspense erótico.
Interessante como Gabriela parte da figura do “bandido” para introduzir a ideia de uma ameaça externa, mas que acaba rendida e subjugada pelo “cidadão de bem”, representada por Inácio, homem branco, de classe média e detentor dos meios de produção. O gerente se desvencilha do seu arquétipo de aparente cordialidade e se mostra em sua natureza primária. Junto a ele, a ajudante e garçonete Sara (Luciana Paes), cuja admiração e o amor seguem uma certa aparência, ou seria, deslumbramento?
Afinal, de todos os 8 personagens presos neste restaurante, quase todos passam por alguma mudança de perspectiva diante daquela situação. Alguns se entregam à sua insanidade, outros não abrem mão de seus ideais e uma outra parcela cruza a tênue linha que divide vida e morte. Independente da decisão que cada um toma, é curiosa a sensação que temos ao final do filme.
Essa dinâmica de microcosmo que ele desenvolve, à propósito, ajuda na construção de unidade em torno da estória contada. O que mostra que o interesse de Gabriela não está voltado para alguma lição catártica trazida por essas personagens. Ao contrário, há uma implícita e positiva tomada de posição pela tradição do slasher movie e os códigos dele derivados, seja a sanguinolência, a violência gráfica, o terror e a insanidade.
O panorama da atual cinematografia brasileira é bastante complexo. Mas como um campo repleto de veredas que conduzem distintas experiências, ele carrega muita riqueza também. E fala de produções que têm buscado se arriscar mais nas estórias contadas. Que acreditam numa proposta mais autoral que tem o cinema e a realidade brasileira como referência temática e estilística maiores.
Com O Animal Cordial, temos à disposição mais uma janela aberta para pensarmos sobre a natureza das obras que fazem o cinema brasileiro mais forte. A partir da relevância de não nos imaginarmos apenas como uma mera simulação do que é o terror norte americano, por exemplo. Temos nossos temas e questões ainda por explorar, seja no cinema de gênero ou no drama. Contamos com uma nova e riquíssima leva de realizadores que não nos deixam dúvidas sobre nossas potencialidades. E Gabriela Amaral Almeida atesta isso com sua obra.



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