O Auto da Compadecida: a intertextualidade de uma obra transnacional
- danielsa510

- 21 de set. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 6 de jul. de 2021

Direção: Guel Arraes. Roteiro: Adriana Falcão, João Falcão, Ariano Suassuna. Montagem: Ubiraci de Motta, Paulo Henrique Farias. Direção de Fotografia: Félix Monti. Som: Roberto Casimiro, Zezé d'Alice. Produção: Eduardo Filgueira, Daniel Filho. Direção de Arte: Lia Renha. Música: Sá Grama. Maquiagem: Alice Fonseca, Marlene Moura.
Há um ciclo que se encerra e se inicia no cinema brasileiro a partir do ano de 2000. Para além da ideia do filme de costumes ou de gênero propriamente dito, a cinematografia do contexto pós retomada foi bastante marcada por sua diversidade conceitual e de propósito mesmo. Entre essas obras, estão O Auto da Compadecida (2000). A adaptação de Guel Arraes a partir do texto de Ariano Suassuna é um dos mais exitosos trabalhos de transposição entre linguagens (literatura, teatro, cinema, televisão). Refletir como isso se deu é o que faremos agora.
Uma interrogação inicial seria a de pensarmos por que o filme funciona tão bem? Quando nos atentamos a seu componente formal, representado pelo conjunto da fotografia, música, design de produção, direção da arte, roteiro e dramaturgia, por exemplo, notamos que o longa não se desenha, ou se mostra, um trabalho ultra complexo. Não estamos diante de uma obra calcada em sua vertente formalista. A forma está ali a partir de cada um desses elementos, claro, mas ela não é o alicerce de condução base do filme.
Esse elemento, de fato, seria o texto. Mas não unicamente enquanto definição linguística. Dizemos da trama textual para além dessa conceituação clássica. A textualidade aqui emerge tanto da verbalização que surge das falas das personagens via escrita do roteiro, quanto da operacionalização do conjunto de elementos listados acima. Juntos, esses são parte dos índices que possibilitam essa leitura do todo que o filme é. As situações que empurram essas figuras para frente na estória seriam essa teia que expande a interpretação dessa leitura.
Interessante notar a corporeidade e a ideia do ator enquanto ponto de convergência máxima dessa intertextualidade. Da escrita de Suassuna, João Grilo e Chicó são o que o escritor propôs. Quando Matheus Nachtergaele assume a personagem, dá-se a corporificação do que, antes, texto apenas. E ai o cinema se coloca e nele, Grilo nasce. É o corpo do ator, sua entonação e resposta à dinâmica dramatúrgica que entra em cena. Esse cênico, por consequência, é uma outra base essencial da obra.
Discute-se muito o fato de plateias internacionais muitas vezes não conseguirem entender o filme na sua essência. E assim como o autor original, Guel Arraes opta por não “traduzir” ou (re)adaptar a essência da estória a fim de suprir essa suposta demanda. A estrutura do longa é bastante clássica. Sua composição capitular demarca bem essas transições. As falas dessas figuras também não se superpõem e seguem uma marcação bastante definida. Mas há um valor de autenticidade o qual o longa não abre mão, a exemplo de outras obras nacionais.
Avancemos no tempo um pouco saindo de 2000 para 2007. Em “Tropa de Elite”, é justamente a realocação dessa estrutura que opera em prol de uma (re)adequação do signo fílmico e formal. que rompe, por sua vez, a potência contida no código resguardado e não pasteurizado se dilui. É o filme de ação nacional posto a partir de uma gramática industrial do sistema internacional de condução. As barreiras entre o longa brasileiro e o filme de gênero (ação) estadunidense passam a inexistir.
Talvez o estranhamento do olhar desse espectador que vê “de fora” surja desse desentendimento e consequente deslocamento estético-formal que o cinema dispõe e cuja abordagem o Auto da Compadecida partilhe e se valha. Seria essa uma posição de defesa e suporte a uma perspectiva de construção soberana da prática audiovisual nacional? Certamente. Por isso voltamos ao texto. Porque Suassuna entendia a relevância de se reafirmar esse posicionamento que vai ao encontro de uma valoração do signo.
Ou seja, da necessidade de se expressar e investigar uma brasilidade que não evoca a estereotipia, mas sim, valendo-se dos costumes e tipos do brasileiro em toda sua potencialidade para reafirmar esse estar artístico soberano. Ele parte da cultura e nela também se expande, se autoafirma. Nem sempre o cinema precisa partir desse necessidade de devolutiva frente à obra adaptada. Mas se nota a decisão de Arraes por preservar esse coeficiente quase artesanal no longa que a muito se remete à arte popular, por exemplo.
É a música armorial correlacionada à espacialidade das locações regionais do filme. Assim como a representação desse cotidiano e seus costumes alocados por e com toda uma estrutura cenográfica e da direção de arte (das roupas aos objetos de cena). A partir da resolução e soma desses elementos, faz-se um cinema que, de fato, dá conta de parte desse imaginário resolutivamente brasileiro. Não de modo ufanista, mas para se atestar enquanto obra transnacional, no fim das contas.
Afinal, os heróis da narrativa vivem em Taperoá, mas suas jornadas são pautadas pela busca quase universal do homem que tenta sobreviver em um contexto onde as desigualdades imperam. Como o pobre pode romper as barreiras que o separa daqueles que têm o poder dos meios? Para Chicó (Selton Mello) e João Grilo , isso passa pelo uso da inteligência e capacidade de lidar com a complexidade das relações humanas na feitura desse cotidiano árduo. É disso, entre tantas coisas, de que se constitui O Auto da Compadecida.
Assista à versão original do cinema aqui



Comentários