O Milagre: modulações naquilo o que é luz e sombra
- danielsa510

- 21 de nov. de 2022
- 3 min de leitura

Direção: Sebastián Lelio. Roteiro: Sebastián Lelio, Emma Donoghue, Alice Birch. Produção: Tessa Ross, Emma Donoghue. Montagem: . Fotografia: Ari Wegner. Direção de Arte: Daryn McLaughlan. Som:Ben Baird, Música: Matthew Herbert.
Na grande maioria das imagens do filme há essa impressão de uma dualidade entre o que é luz e sombra. Uma atmosfera de um peso constante que se desenvolve tanto nas ambiências internas quanto nos ambientes externos.
Quando vemos os personagens em campo aberto, por exemplo, o céu que abriga suas figuras terrestres parece sempre refletir essa tempestade que se revolve diante do conflito e do mistério envolvendo a condição de Anna.
A falta de respostas e uma provável solução para o intrigante caso da garota só se contrasta com a claridade de um céu luminoso, apesar das nuvens que cerram constantemente o firmamento do filme de Sebastián Lelio.
Quando estamos no interior do ambiente da casa, o peso atmosférico se duplica, materializado agora pela dureza dos cômodos marcados por paredes verde musgo escuro ou pela penumbra luminosa que risca as frestas das janelas e portas da residência de Anna.
Não se trata, obviamente, de uma definição técnica no nível da plasticidade das imagens em si. Mas também de uma reverberação pictórica da complicação que esse enigma do novo mundo remete a todos os envolvidos na história.

Esse é um ponto importante porque nos termos da conceituação da narrativa, a obra não nos dá um ídolo cego a quem temos de seguir para o "desvendamento" do mistério em curso. Do corpo inquisidor que contrata os serviços de Lib Wright, passando pela família de Anna e a garota em pessoa, todos parecem fraturados em alguma medida pelas consequências do gesto da "menina santa" em abrir mão da sua alimentação.
O corpo que definha pela falta de nutrientes não se limita na materialidade da matéria física da jovem, mas corrompe a compreensão daquela comunidade ao redor e do entendimento que a enfermeira tem sobre seu ofício e dos traumas que ela carrega consigo até ali.
A concepção do mal se dilui em frentes distintas, assumindo diferentes tons e compreensões das dinâmicas do nosso mundo. O que é ser bom, ser mal, o que significa vencer ou falhar com aqueles ao nosso redor? São questões que Lelio modula no direcionamento de um exercício interpretativo horizontal.
A leitura que o filme nos induz não busca o desvendamento de algum segredo inimaginável, ainda que o seu desenvolvimento incite isso. Essa recusa nos leva igualmente a um estado perceptivo que foge da lógica das "caixas misteriosas".
Sim, há um instante em que o gatilho de toda a base da problemática se deslacra, mas seu impacto não nos conduz para esse estado catártico do final explicado. O problema pautado na obra como um todo não diz respeito à busca de um final feliz. Apesar de também não nos negar isso, é louvável Lelio assumir a coragem de lidar com o filme como produto já dado.
Não estamos diante da realidade. Estamos assistindo a um filme, o que não necessariamente precisa significar que tenhamos de lidar com esse fenômeno considerando cegamente sua potência ou a desconsiderando pelo seu elemento ficcional.
As três intervenções que Lelio propõe no prólogo, no meio da narrativa e no epílogo nos falam desse cinema de consciência. Do objeto artístico como um gesto de reafirmação dessa dança entre realismo e encenação de uma cinematografia que faz ver, sentir e qual podemos quase tocar também.



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