O Pântano: os limites da (in)visibilidade na ordem do plano
- danielsa510

- 19 de abr. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 9 de jul. de 2021

Direção: Lucrecia Martel. Roteiro: Lucrecia Martel. Montagem: Santiago Ricci. Direção de Fotografia: Hugo Colace. Direção de Arte: Graciela Oderigo. Design de Produção: Graciela Oderigo. Som: Guido Berenblum.
Poucas coisas são tão ordinárias no cinema quanto se contar uma narrativa do cotidiano de uma família. Na abordagem naturalista que designa, entre outros pontos, uma perspectiva mais realista do modo de representação cinematográfica, modular essa veia mais crua com uma proposta de ficcionalização dessa mesma realidade pode ser um dos grandes desafios da cinematografia contemporânea. Lucrecia Martel entendeu esse jogo e a partir disso faz do cinema um exercício brilhante na metamorfose da forma e sentido. Há vários temas em debate numa obra como O Pântano (2001), mas um que se mostra central é a da dinâmica entre pessoas e famílias.
Não há protagonista, mas sim arquétipos minunciosamente investigados a partir da posição por cada um deles ocupada. As mães, enquanto matriarcas em estado de crise na condução de núcleos familiares decrépitos e inseridos em um estado de iminente tensão, são uma espécie de ponto guia desse conto que fala sobre o entrelaçamento de gerações. E o fato de Martel não pormenorizar isso é o que torna o longa uma das mais mais potentes narrativas já feitas nesse século.
Aqui, estamos diante do ato da realização onde o autor assume o total controle sobre a obra. Uma cena que, aparentemente seria formada por uma interação entre dois ou três personagens em um único cômodo, se metamorfoseia e pluraliza pela soma de outros três a quatro figuras numa prova inconteste de como a diretora consegue moldar a dinâmica dramatúrgica em prol dessa construção narratológica em progressão. Como um corpo vazio, a cena vai se preenchendo e preenchendo até que todo o espaço de representação não suporte mais nenhuma adição àquele ponto.
Interessante falarmos desse uso complementar dos espaços porque chegamos chegamos no ponto da análise em que destacamos aquilo o que o quadro não consegue alcançar. O extracampo é um elemento muito importante da narrativa. Pensemos por um momento nessa tempestade que circunda todo o filme, mas que nunca se apresenta ou consolida, de fato. Por que isso? Uma possível interpretação pode ser a intenção da própria Martel em usar essa fúria da natureza em amplas frentes.
Uma delas se materializa na dimensão do quadro filmico. Nós não vemos essa chuva se convertendo em imagem, mas pela via sonora, a percebemos em variados instantes ao longo de todo o filme. Ela está ali diante dos nossos olhos, mas só podemos percebe-la através do nosso canal auditivo. Isso não é gratuito. Porque o som é uma das dimensões mais privilegiadas na gramática adotada por Martel. Não é um recurso técnico secundário, mas sim uma parte estruturante e de primeiro plano da sua concepção filmica. Seus filmes, muitas vezes, começam a ser criados a partir daquilo o que o som pode dar a ver.
Do mesmo modo, ela segue uma aplicação muito interessante sobre aquilo o que está dentro do quadro mas não é nomeado como uma questão direta no universo da narrativa do filme. Imaginemos agora por que há tantas pessoas cortadas ou sangrando nessa estória? Um corte é gerado como decorrência direta desse acidente não previsto. E logo, se eu sangro, é porque algo que estaria no meu entorno me rasga a pele. Aqui, essa intervenção na derme desses personagens os mostra o quanto eles são frágeis e vulneráveis.
A própria ideia desse sangramento em aberto pode ser lido como uma metáfora das tensões entre essas figuras. Esse conflito, no entanto, não é explorado de modo expositivo. Dificilmente vemos esses embates ditados diante da câmera. Eles existem e são extraídos ao longo dos capítulos do filme, mas não de modo superficial. A profundidade dessa abordagem está bastante relacionada a essas informações que presumem os embates sociais ali descritos. Às vezes não se trata daquilo o que a pessoa verbaliza, mas a ideia implícita na dinâmica constituída.
Mais do que retratar eventos, portanto, Martel convida a uma reflexão sobre uma proposta de autonomia nestes gestos de representação. Se todas as formas de dá a ver as imagens já foram feitas, como podemos lançar novos paradigmas? Essas são as questões que filmes como esse nos dão. Não importa vermos, literalmente a partir do que enxergamos ou inconscientemente a partir do que intuímos na relação com essas imagens. É o trajeto que importa.
A fala final de uma persona sobre a falta de fé não tem compromisso algum com uma necessidade autoexplicativa sobre tudo o que vimos ao longo do filme. Ela é, na verdade, a ponta da cortina que Martel levanta para que possamos olhar com o canto do olho a parte do todo que as tensões sociais na América Latina se dão nesse século XXI e na contemporaneidade. Não é sobre uma mera representação dramática. É mais sobre um convite à reflexão sobre um novo milênio que se avizinhava e as respostas de um corpus social que certamente não estava preparado para esse novo tempo e suas compras nuances.



Comentários