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Os Catadores e Eu: a humanidade impressa nas lentes do cinema

  • Foto do escritor: danielsa510
    danielsa510
  • 1 de dez. de 2020
  • 4 min de leitura

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Direção: Agnès Varda. Roteiro: Agnès Varda. Fotografia: Didier Doussin, Stéphane Krausz, Didier Rouget, Pascal Sautelet, Agnès Varda. Som: Joanna Bruzdowicz, Isabelle Olivier. Montagem: Jean-Baptiste Morin, Laurent Pineau, Agnès Varda.



O cinema de Agnès Varda é o cinema da sensibilidade. Toda essa poesia e lirismo a respeito da vida moderna e contemporânea, a propósito, emergem não na forma de uma apresentação melosa e ultrasentimental. Pelo contrário, a leveza desse cotidiano camponês e urbano convergem de um mesmo ponto com que a dureza da realidade é construída. É disso que é feito um filme como "Os Catadores e Eu" (2000).


Ela parte da ideia da arte visual para buscar dar conta de um gesto: catar, colher, respingar (na cultura francesa). Falamos do ato de campesinos e cidadãos da metrópole na França de recolher legumes, frutas, sementes ou objetos diversos na zona rural ou urbana desse país. Mais que isso, para além do ato, a investigação acerca de um modo de viver, de olhar para o mundo. É daí que se sedimenta essa construção do olhar que Varda põe em cena.


Interessante notarmos como ela mesma coloca em dúvida o próprio modus operandis da sua posição enquanto realizadora. Ela fala em determinado momento da obra sobre a causalidade e a sua improbabilidade enquanto evento terrestre. Esse eixo da coincidência ou do ato acidental de algo que ocorre de modo inesperado é muito bem explorado por ela. É como se a diretora entendesse o poder desse estado na modulação da vida e investisse muito fortemente nele como uma ferramenta propulsora da narrativa mesmo.


Por isso o caráter de deriva é tão importante e central na sua obra, e isso é algo que vemos muito claramente, aqui, também. A cartografia do documentário na história mundial conta muito sobre a imprevisibilidade dos eventos narrados. Em "Os Catadores…", esse imprevisível se dá muito na lógica dos encontros rumo a esse outro que, na maioria das vezes, vem apresentado pela perspectiva da diferença. Por isso sua cinematografia se pauta pela lógica da alteridade. É quase um exercício etnográfico. Na verdade o é.


É o humano que interessa aqui. Ou melhor, é o ser vivente, afinal, o filme tece uma dinâmica tão fluida entre e a partir de tudo o que entra em cena que a impressão que temos é que todos esses elementos - entre homens e mulheres, animais e seres inanimados - são originários de um único ponto de vista fundador. Eles estão, de fato, dentro um mesmo universo: o do caos imagético e sonoro que o audiovisual se insere desde o final do século XIX. Organizar esse estado de coisas é um dos papéis do autor. Entretanto, não é a ordem que Varda anseia.


Ela, em verdade, esteve sempre em busca da inconsistência que o cinema podia dar a ver. Perder-se na miríade de propabilidades que o gesto da captação a provia era uma das questões norteadoras do seu fazer artístico. Ela filmava. E sempre indo pra frente, de personagem em personagem, ela colhia mais um recorte do quebra-cabeças que seus filmes tão bem representavam e ainda hoje representam. Filmado em 2000, “Os Catadores…” fala de pessoas que ultrapassaram as fronteiras limitantes do tempo. Elas não estão enclausuradas nele.


A câmera de Varda (fiel companheira de sempre) os liberta. Ela não objetiva extrair verdade alguma deles. O discurso, verídico ou não, está lá. Está presente na oralidade e prática da catadora que introduz o filme, assim como no discurso do grupo de ciganos, dos “vagabundos” ou cidadãos comuns que vivem à margem de uma Europa imersa em complexas contradições. Todo esse escopo, claro, vem à revelia do tudo que o longa apresenta em suas 1 hora e 22 minutos. É o encontro junto ao outro que a interessa, e não, através do outro.


Essa é a diferença dessa cinematografia humanista. De uma arte que parte do outro não para capturar algo a todo custo. O cinema aqui não é um ato de violência. É uma janela para a reparação junto a um mundo que não é idealizado, que é imperfeito, incompreendido, por vezes sujo. Toda essa forma de negação interessa à mestre da cinematografia. Com uma espécie de “terceiro olho” da arte para a vida, ela ressignifica o encontro com esse outro por meio de abordagens diversas.


A empatia e o respeito ao espaço dessa figura outra são, aqui, suas táticas primárias. O cuidado dessa mulher, sempre empunhando sua câmera em mão, é o de não soar incoerente. E ela, em nenhum momento ao longo dos mais de 60 anos de carreira, o foi. Isso diz muito da sua capacidade em eternizar cada uma das pessoas e narrativas por ela elucidadas. Seja na ficção ou no documentário, esse gesto de moldar o mundo por meio de imagens e sons, foi sua causa maior.


A finalidade última: a busca pela transcrição da humanidade contida em cada uma das relações que a atravessaram, do mesmo modo que àqueles por ela captados também foram atravessados. Algumas dessas figuras, de tão únicas, soam irreais. Não seria fictício a estória de um homem que acorda às 04 horas da manhã para colher sobras de uma feira livre e que, mestre em educação, vive em um abrigo e doa suas noites para ensinar pessoas sem lar e vindos de várias parte do mundo, como refugiadas ou sem família? Sim, seria. Não estivéssemos diante do cinema de Varda, Agnès Varda.


Assista ao filme na íntegra abaixo



 
 
 

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