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Últimos Dias no Deserto: A reflexão liberta do julgo apológico

  • Foto do escritor: danielsa510
    danielsa510
  • 20 de abr. de 2019
  • 4 min de leitura

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Direção: Rodrigo García. Roteiro: Rodrigo García. Montagem: Matt Maddox. Direção de Fotografia: Emmanuel Lubezki. Design de Produção: Jeannine Oppenwall. Direção de Arte: John DeMeo. Música: Phil McGowan, Richard Ziegler.



Os filmes com temática religiosa usualmente se deparam com um instigante desafio: se colocar ante a perspectiva de um cinema dividido entre obras destituídas de relevância em termos de forma e conceito; e de trabalhos que assumem exatamente esses módulos para se potencializar para além do que o gênero “religioso” aporta. Considerando essa segunda abordagem é que somos apresentados a trabalhos como o singular “Últimos Dias no Deserto” (2015).

Escrito e dirigido pelo diretor colombiano Rodrigo García, o longa narra um imaginário capítulo na história de Jesus (Ewan McGregor) ambientado nos 40 dias em que ele esteve no deserto orando e jejuando. Durante sua passagem pela desértica área, o Homem Santo se aproxima de uma família em crise, enquanto tem de lidar também com a presença enigmática do demônio (Ewan McGregor) que a todos espreita.

O que mais impressiona no filme, certamente, é o fato de ele ser um trabalho independente. Isso se evidencia muito no modo como ele se apresenta tanto em termos de estrutura no que diz respeito a sua forma quanto em relação às decisões conceituais que modulam a narrativa. Ele não é um filme apológico, em um sentido de querer introduzir uma “moral” ao espectador. Isso é algo difícil de se perceber em obras de temática religiosa.

A relação com a dimensão espectatorial é forte porque o longa não presume aquilo o que você teria de interpretar diante do que ele apresenta. Não vemos o uso de cartelas autoexplicativas, diálogos expositivos ou situações melodramáticas que visam unicamente gerar “engajamento” por meio de um sentimento catártico forçado. Garcia abre mão de todos esses vícios que enfraquecem a experiência cinematográfica e investe na economia de diálogos e na construção de uma obra pautada na ação.

O que significa dizer que em sua grande maioria, as falas no filme vêm muito para complementar ou reforçar algo ou alguma ideia apresentada por meio de imagens e sons. Essa é, portanto, a natureza prática do bom cinema. Ele não busca domesticar o olhar daquele que o assiste e antes disso, desafia a forma de apreciação propondo, sempre que possível, rotas alternativas para a construção fílmica. Em Os Últimos Dias no Deserto temos abordagens definitivas desse modo de enxergar e se fazer cinema.

Ao invés de se trabalhar com grandes elencos, ele reduz o casting e opera com uma equipe mínima, quase que de natureza teatral. Em sua base, o longa apresenta 5 personagens: Jesus, o demônio, e a família, formada pelo pai (Ciarán Hinds), a mãe (Ayelet Zurer) e o filho (Tye Sheridan). O núcleo dramatúrgico é pequeno e isso permite que cada figura dessa seja desenvolvida progressivamente.

O que é interessante porque diz muito de um filme que aborda as potências e fragilidades desse homem à beira de uma nova linha histórico-temporal. Afinal, depois da passagem de Jesus por Jerusalém e sua consequente morte, a linha do tempo ocidental e cristã redefiniu-se tal qual a conhecemos hoje. A narrativa, por isso, parece em determinados momentos estar centrada mais no estudo desses personagens anônimos e na possibilidade de podermos, a partir daquilo o que eles são, percebermos os valores que o protagonista, no caso, Jesus, construía naquele contexto.

Aqui, não é a figura do “salvador” que está em evidência, e sim, a do homem que precisava se colocar a prova dia a dia. Ele tinha muitas dúvidas, estava inseguro diante de muitas outras questões. E isso é algo que o longa demanda uma atenção maior. “Melhore suas palavras Yeshua. A intenção é boa, mas com frequência as palavras são ocas e inúteis”, diz Jesus a si mesmo diante da incerteza de como seus ensinamentos poderiam fazer real diferença na vida das pessoas a quem ele iria lidar a partir daquele ponto em diante.

E isso é algo muito bonito porque a infabilidade dessa figura é colocada em questão de modo a confirmar a reflexão acerca desse “santo” que ainda era muito homem, acima de tudo. Mas não apenas Jesus, o próprio Demônio é retratado aqui como um personagem que está além da vilania. Ele não é necessariamente um antagonista. Ele supera isso. Em um dos momentos mais mercantes, o filme apresenta um diálogo entre o bem e o mal, mas não a partir de um embate, mas de uma troca.

Jesus conversa ao redor de uma fogueira com o Demônio e juntos eles trocam ideias acerca do que seria Deus para além de uma entidade desconhecida. É um dos momentos mais memoráveis do filme porque ajuda na quebra da visão estigmatizada entre essas duas forças. E ao mesmo tempo, estipula uma construção técnica de um cinema que se pensa em forma e conceito.

A veia independente de que falamos anteriormente resulta nisso: um filme tecnicamente irrepreensível, considerando a esplêndida fotografia de Emmanuel Lubezki. Além de outros elementos como montagem, que garante a fluidez entre as sequência dos seus 98 minutos de duração. E da trilha sonora original de Danny Bensi e Saunder Jurriaans cuja construção remete muito a uma ideia de lamento com sua estrutura ambientada por violinos e instrumentos de sopro.

Os grandes planos valorizam bastante os cenários desérticos que o filme dá a ver. O que nos permite pensar na ideia de estarmos diante de um "western’, guardadas as suas proporções. Cada quadro do filme traz uma forte carga de composição feita a partir das próprias estruturas rochosas e vastos terrenos arenosos numa mistura de referências dos melhores filmes de John Ford (1894-1973) e Terrence Malick (1943 - ), por exemplo.

Parece meio absurdo, mas é esse sentimento que o bom cinema nos evoca. Ele não limita, antes, permite novas veredas interpretativas. Últimos Dias no Deserto é verdadeiramente um grande filme. Uma obra honesta em suas intenções e sincera na sua relação junto ao espectador. É uma belíssima prova de que a apologia pode dar espaço à reflexão sem julgo. Prova de que o cinema vence quando sua intenção é partilhar perspectivas em alternância Às narrativas pasteurizadas por Hollywood.

 
 
 

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