Visages Villages: Uma carta de amor ao encontro com o outro
- danielsa510

- 31 de mar. de 2019
- 4 min de leitura

Direção: Agnès Varda, JR. Roteiro: Agnès Varda, JR. Montagem: Maxime Pozzi-Garcia, Agnès Varda. Fotografia: Roberto De Angelis, Claire Duguet. Animação: Oerd Van Cuijlenborg. Design de Produção: Mark Digby. Efeitos Visuais: Dan Rapaport. Música: Matthieu Chedid.
Rostos e vilas. O componente dessas duas ideias em tudo aquilo o que unem as pessoas e os lugares aonde passamos e onde vivemos, é uma das maiores forças do cinema de Agnès Varda. Sim, ela nos deixou no último 29 de março, mas a marca e presença da sua arte seguirão para sempre conosco. Em seu 51º longa-metragem, por exemplo, a mestra francesa constrói junto com o artista visual Jr., uma espécie de “carta de amor” à alteridade por meio do tocante Visages Villages (2017).
O documentário acompanha a dupla de artistas que juntos viajam pelo interior da França colecionando histórias de pessoas comuns e realizando intervenções fotográficas por onde passam, seja uma vila abandonada no lado sul francês ou dentro de uma fábrica multinacional com centenas de trabalhadores. O recorte do filme e sua maior potência é exatamente esse elemento do acaso ou dessa aparente despretensão que ambos os realizadores imprimem em cada uma das sequências que compõem o longa em seus 93 minutos de duração.
Estamos diante de um documentário, mas o filme em si não se limita às especificações que o rótulo do gênero traz. E essa flexibilização possível é colocada logo em seus créditos iniciais. Junto a todas as logomarcas das produtoras da obra aparecem na tela, ouvimos o violão de Matthieu Chedid sendo afinado até que o tom certo permita que o filme tenha início. Uma animação em rotoscopia nos apresenta os primeiros protagonistas da narrativa: Agnès e JR.
Não estamos diante de um documentário tradicional, obviamente. Tudo em “Visages” nos convida a um exercício de reposicionamento da nossa forma de olhar o filme diante de nós. Mas assim o foi também toda a abordagem que tanto Varda quanto JR decidiram adotar na proposição dos seus trabalhos. É claro que nos 50 anos que separam os dois em termos de idade, essas figuras se encontram de maneira casuística mas também quase que inevitável. Ele, já influenciado pelas obras da diretora; ela, impactada pelo trabalho fotográfico dele ao redor do mundo.
A partir desse ponto, ambos partem em viagem nesse documentário que, dado isso, já se torna agora um road movie (também). A ideia dos artistas é a de realizar esses encontros com as pessoas que estiverem no caminho deles mas, diferentemente da premissa do confronto, eles querem partilha. Ou mesmo diferentemente do documentário que está para sugar as estórias daqueles a quem as lentes se apontam, os diretores querem proporcionar uma espécie de reencontro desses atores consigo mesmos e com aqueles que estejam ao seu redor.
Esses são momentos em sua maioria tocantes. Vemos uma senhora remanescente de um vilarejo mineiro que resiste em sua morada frente à pressão dos grandes conglomerados industriais franceses em ocupar o lugar. Nas paredes dessas casas, JR e Agnès imprimem imagens desses mineiros e dessa brava mulher colando-os no lugar onde pertencem. As imagens deles resistirão fixados em cada tijolo daquelas construções. Feito isso, a senhora e o moço seguem viagem. Mas não nos enganemos, esse não é um filme melodramático.
Há sempre uma reminiscência de um tom cômico que hora se improvisa, hora segue uma diretriz de uma roteirização pré-estabelecida. E nisso, o longa também se aproxima muito do cinema de ficção. Porque não é como se ele lidasse com a captação de uma realidade inalterável ou que deva ser retratada com o “realismo” que a televisão, por exemplo, usa como premissa na sua concepção diária. Visages está além disso, obviamente. Tanto Varda quanto JR performam para a câmera.
Enquanto a mestra francesa sobe lentamente uma longa escadaria que leva a imensos tanques de água, JR passa por ela questionando sua disposição àquele ponto. “E então você vem”, pergunta JR. “Você sabe muito bem escadas me fazem mal”, responde Agnès, ao que JR replica: Não perca tempo a vista é linda lá em cima”. Agnés retruca: Veja por mim. Já fiz a minha ginástica da semana, já chega”.
Esse diálogo é um belo exemplo de como eles usaram o humor e o sarcasmo para criar situações inusitadas e engraçadas. A variação tonal da comédia é uma das marcas do cinema de Varda e Visages traz isso muito forte na sua base. Essa construção ganha ainda mais força pela montagem assinada por Maxime Pozzi-Garcia e Agnès. Cada sequência em sua conclusão nos leva e é conectada por um novo tema que nos leva a uma nova cena.
E se o cinema tem na montagem e fotografia as suas bases fundadoras, os diretores alinham suas visões montando e compondo cada uma dessas pessoas e situações a partir de uma dinâmica e fluidez irretocáveis entre tudo o que é som e imagem no filme. Mas lembram do tom ficcional falado anteriormente? Ele retorna no terceiro e último ato da obra por meio de um conflito que atinge Varda fortemente. E se até aquele momento todos que cruzaram o caminho da dupla estiveram dispostos a esse encontro, uma pessoa se colocou no lugar de antagonismo: Jean-Luc Godard.
Ele atinge a colega de carreira e vida de um modo que ela certamente não esperaria. Mas ela era uma otimista, ele, um pessimista convicto. E na dureza de um encontro frustrado, o filme chega a um dos seus momentos mais comoventes. Felizmente, JR estava lá. Ela estava do seu lado e ela sabia disso. A mão que o jovem usou para reconforta-la é a mesma que nos lembra do quanto o encontro de gerações é um dos maiores legados que a arte pode nos deixar.
E agora que Agnès nos deixou, sua morte não é o fim da história de uma artista, é apenas o começo. Porque o legado que ela deixa para todos nós sobreviverá por tudo aquilo o que ela foi em vida e seguirá inspirando, mesmo após sua partida. Seu nome estará para sempre marcado na história da arte que amamos, em tudo aquilo o que o cinema é. Estará impresso nas veredas da arte que ela ajudou a aperfeiçoar e criar, disso temos certeza. Agradecemos por tudo o que você nos ensinou, Agnès. Agora, você pode voar.



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