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Ervas Secas: o recuo diante do cinema


Crédito: Reprodução

Direção: Nuri Bilge Ceylan. Roteiro: Nuri Bilge Ceylan, Ebru Ceylan, Akın Aksu. Montagem: Nuri Bilge Ceylan, Oguz Atabas Direção de Fotografia: Cevahir Şahin, Kürşat Üresin. Produção: Bettina Ricklefs, Mediha Didem Türemen. Som: Pascal Chauvin. Direção de Arte: Meral Aktan. Música: Giuseppe Verdi, Philip Timofeye


Durante um juntar em uma noite no inverno turco, Samet (Deniz Celiloğlu) e Nuray (Merve Dizdar) compartilham um instante de intimidade após uma série de diferentes momentos de discussão que vão da conversa desproposital, passando por uma debate sobre a ética social contemporânea até uma demonstração silenciosa de "empatia".


A mulher se levanta de um sofá onde ambos estavam sentados após uma calorosa argumentação, olha para o homem - que ainda estava inerte em seu assento, e a sequência se encaminha para uma outra parte da casa a qual não tínhamos tido acesso, ainda. No quarto, o jogo de indicações continua enquanto a jovem observa a noite pela janela do quarto.


Samet se aproxima, toca Nuray levemente na nuca e a beija mais uma vez. Antes que eles prossigam, ela pede para que ele apague as luzes dos outros cômodos a fim de evitar que tanta luz entre no espaço onde ambos estavam. Samet responde ao pedido com mais um beijo apressado e que acaba revelando uma visível euforia.


Nos olhos daquela figura feminina, apenas uma impassividade irrefreada e repleta de uma segurança intransponível em contraposição à excitação juvenil que tomava conta do protagonista do filme. "As luzes", repete, ela. Ao que o parceiro de noite reponde com um beijo derradeiro na testa: ok. Voltamos ao corredor da casa.


Na sala, apagam-se uma iluminária central e um pequeno abajur no cante de uma mesa. Agora à meia-luz, a residência adquire um outro tom daquele o qual o convidado havia sido recepcionado instantes atrás. Samet volta pelo corredor, para diante de uma porta que corta o ambiente, olha em direção ao quarto e entra no cômodo, até então, ainda não revelado. Enquanto empurra a porta, ele olha com ar de desconfiança à medida que avança nesse novo espaço.


Ao chegar no banheiro, ele toma uma pílula - talvez algum estímulante sexual, tudo está implícito, - e volta, por meio de uma elipse ou um salto temporal, ao quarto de Nuray. Sentada à cama, ela olha para o colega enquanto ajusta a prótese que utiliza na perna direita. Samet a olha com surpresa e algum desconcertamento, até que se deita ao lado da mulher ao seu lado.


Toda a sequência descrita anteriormente diz bastante do tipo de estrutura fílmica que Nuri Bilge Ceylan investiga desde a última década de 2010.


De "Era uma Vez na Anatólia" (2011), passando por "Sono de Inverno" (2014), até "A Árvore dos Frutos Selvagens" (2018), o realizador trabalha na descrição de um universo marcado, de um lado, pela densidade das narrativas do mundo contemporâneo, e de outro, pela multiplicidade de tons presentes nos personagens por ele criados em cada um desses três últimos trabalhos.


No entanto, é nesse ponto de suspensão em "Ervas Secas" (2023) que o diretor, certamente pela primeira vez, intui mais contundentemente o peso do caráter alegórico que o cinema pode imprimir no modo de lidarmos com o jogo que estabelecemos na nossa relação entre a arte e a retratação do que poderíamos entender por realidade.


Há sempre essa atmosfera de conflitos, de casos inacabados entre uma sociedade desacreditada de si mesma. Seja em pares ou de modo individualizado, os perfis tratados por Ceylan nos conduzem a essa análise acerca do vazio presente na nossa humanidade.


Do policial que busca solucionar um crime insolúvel, a um aldeão com a honra fragilizada, passando por uma juventude fraturada nas suas buscas e desejos no tempo presente, esses tipos orbitavam em uma estrutura muito rígida dentro de todo o preciosismo e perícia marcante do estilo ceyliano.


"Ervas" gera uma espécie de novo ou outro estranhamento por excepcionalmente marcar esse rompimento entre as esferas de um universo reencenado e uma encenação que se atomiza na constituição desse estado o qual entendemos enquanto realidade.


Ou seja, enquanto que nos filmes anteriores não conseguíamos sair de dentro da estória em função da dificuldade de nos apartarmos do modo como a estrutura fílmica se estabelecia, independente de estarmos diante de um new western ou um psicodrama, aqui esse convite acontece de modo muito marcante.


Toda o segmento na casa de Nuray, cuja duração se estende por cerca de 33 minutos ininterruptos, nos conduz a isso. A essa espécie de suspensão central do filme. Sem dúvida é o instante de maior importância no decorrer da obra por nos fazer enxergar isso tudo e nos permitir esse recuo sob o cinema e diante dele mesmo. É a partir disso, dentre tantas outras coisas, que esse impressionante trabalho se elabora.

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